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19/12/2019

Retrospectiva: os direitos humanos em 2019

A sociedade civil mostrou resiliência e capacidade de reagir para reverter ou barrar muitas das medidas mais autoritárias

 (Brasília - DF, 07/05/2019) President of the Republic, Jair Bolsonaro signs an Executive order that applies to the acquisition, registration, licencing, possession, carrying and trading of arms - SINARM and SIGMA. Photo: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 07/05/2019) President of the Republic, Jair Bolsonaro signs an Executive order that applies to the acquisition, registration, licencing, possession, carrying and trading of arms - SINARM and SIGMA. Photo: Marcos Corrêa/PR

O ano de 2019 foi muito desafiador para a atuação da sociedade civil e para aqueles que defendem o Estado de direito. Desde o primeiro dia do governo do presidente Jair Bolsonaro, convivemos com tentativas de restringir e controlar a atuação de ONGs, criminalizar defensores, suprimir direitos, enfraquecer a proteção às florestas e seus povos originários e endurecer políticas criminais. Por outro lado, a sociedade civil mostrou resiliência e capacidade de reagir para reverter ou barrar muitas das medidas mais autoritárias. A Conectas fez parte front no Congresso Nacional, no Supremo Tribunal Federal e na ONU, sempre atenta a violações e influenciando importantes atores políticos na defesa de direitos fundamentais e da democracia.

Confira a retrospectiva dos principais temas em que a Conectas atuou em 2019:

1. MP Controle de ONGs

O primeiro dia útil do governo Bolsonaro trouxe uma medida provisória pondo em prática sua promessa de campanha de “acabar com qualquer forma de ativismo”. Publicada no dia 2 de janeiro, a MP 870 concedia à Secretaria de Governo da Presidência da República a competência de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”.

A sociedade civil incidiu de forma efetiva na tramitação da MP no Congresso Nacional e conseguiu derrubar o artigo que garantia o controle das organizações pelo Estado. Depois de forte pressão, a comissão mista que analisou a matéria decidiu tirar da Secretaria de Governo o poder de monitorar a atividade de organizações não governamentais.

2. Mineração

Os primeiros dias do ano foram marcados por um desastre socioambiental sem precedentes. Na tarde do dia 25 de janeiro, o rompimento de uma barragem na região de Brumadinho (MG) causou a morte de mais de 252 pessoas e o desaparecimento de outras 13.

A ocorrência de mais um desastre com barragens fez evocar o caso do Rio Doce, que completou 4 anos neste último dia 5 de novembro, quando vítimas e familiares realizaram atos simbólicos em protesto contra a não reparação de seus danos físicos e morais.

A sequência de desastres levou a mineradora Vale a retirar-se do Pacto Global da ONU, a maior rede de responsabilidade social e corporativa do mundo e fez com que vítimas dos dois desastres atravessassem o Atlântico para contar suas histórias em uma série de encontros com acionistas do setor minerário, organizações da sociedade civil e imprensa, na Inglaterra.

No decorrer desse período, a Conectas acompanhou de perto as discussões sobre o Projeto de Lei Geral de Licenciamento (3.729/2004), participando dos debates no Grupo de Trabalho estabelecido na Câmara dos Deputados para discutir o tema. O rompimento do acordo com a sociedade civil pelo relator do Projeto, que apresentou novo texto trazendo graves retrocessos ao licenciamento ambiental, foi denunciado por cerca de noventa organizações da sociedade civil, que exigiram que este importante instrumento da política nacional de meio ambiente fosse preservado.

3. Brasil deixa Pacto Global de Migração da ONU

Ainda no início do ano, o Brasil anunciou sua saída do Pacto Global de Migração da ONU. O acordo, que trata de questões sobre como proteger de forma mais efetiva os migrantes e como integrá-los à sociedade, tem sido criticado por representantes da direita radical no mundo, como o premiê húngaro Viktor Orbán e o vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini.

Ao anunciar a saída do Brasil, o chanceler Ernesto Araújo disse que o pacto internacional é um “instrumento inadequado” para lidar com a questão e que os países devem estabelecer suas próprias políticas. O país se juntou aos Estados Unidos, Israel, Hungria e Áustria, que também se retiraram do acordo.

4. Rio atinge recorde histórico de mortes por policiais

O número de mortos por ações policiais cresceu no estado do Rio de Janeiro em 2019, chegando ao patamar mais alto em mais de duas décadas. Até o mês de outubro, o Instituto de Segurança Pública contabilizou 1.546 pessoas vítimas da letalidade policial.

A alta de homicídios causados por agentes do Estado coincide com o endurecimento das políticas de segurança pública em âmbito estadual e federal. O governador Wilson Witzel , assim como o presidente Jair Bolsonaro, defende publicamente que policiais atirem para matar.

As ações de Witzel foram duramente criticadas pela sociedade civil e questionadas por órgãos internacionais como as Nações Unidas e a OEA. Após a menina Ágatha Félix, de 8 anos, se tornar a quinta criança morta por tiros no estado este ano, o governador também foi alvo de denúncia no Conselho de Direitos Humanos da ONU

5. Desmatamento e incêndio na Amazônia

O governo Bolsonaro atribuiu ao Ministério da Agricultura a competência da demarcação de terras indígenas, reafirmando sua intenção de interromper e reverter o processo de demarcação. Felizmente, a ação foi posteriormente revertida e a competência voltou para o Ministério da Justiça.

As políticas de desmonte de legislações e órgãos de fiscalização ambiental pelo governo brasileiro foram denunciadas ao G7, grupo que reúne os sete países mais desenvolvidos do mundo. O líder indígena brasileiro, Kayapó Raoni Metuktire, entregou a carta pessoalmente ao presidente francês, Emmanuel Macron, após a reunião da cúpula afirmando haver agravamento da crise ambiental na Amazônia e solicitam aos países do bloco a adoção de medidas para o enfrentamento do desmatamento e das queimadas na região.

Durante a COP 25 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), um dos maiores eventos do mundo sobre clima, a Conectas lançou o Guia de Litigância Climática, produzido em parceria com o Instituto Clima e Sociedade, reunindo casos bem sucedidos de litígio sobre questões climáticas já realizados em diversas partes do mundo.

6. Violação de tratado internacional contra a tortura

Em junho, o presidente Jair Bolsonaro exonerou, via decreto, todos os peritos do  MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), órgão responsável por investigar violações de direitos em locais de privação de liberdade como penitenciárias, hospitais psiquiátricos e abrigo para idosos.

O decreto que modificou o funcionamento do órgão estabeleceu que os novos assessores jurídicos não fossem mais remunerados. Na ocasião, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA, manifestou repúdio e preocupação com o desmonte do MNPCT e declarou que a medida é uma ameaça à independência que as instituições de inspeção devem ter.

Em agosto, a Justiça Federal manteve válida uma liminar que determinou a reintegração dos 11 peritos e assegurou o pagamento dos mesmos.

Em dezembro, o Subcomitê da Nações Unidas para a Prevenção da Tortura acusou o governo brasileiro de descumprir um tratado da ONU sobre combate à tortura.

7. Vai e vem da política de armas

Entre os meses de janeiro e agosto, o presidente Jair Bolsonaro publicou ao todo oito decretos de armas que visavam expandir e flexibilizar as regras para posse e porte de armas no Brasil – muitos deles contrariando o Estatuto do Desarmamento, que regulamenta o uso de armas no país desde 2003. Uma de suas principais bandeiras durante a campanha presidencial, sua política de armas também foi pauta de votação no Senado, com um projeto de lei do executivo que entre outras propostas, aumenta a potência de arma autorizada para civis.

8. STF nega extradição de cidadão turco

Segunda Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) vetou, por unanimidade, o pedido de extradição do cidadão turco naturalizado brasileiro Ali Sipahi. Sipahi vive no Brasil há 12 anos e foi preso em abril a pedido do governo da Turquia, que o acusava de “apoiar e integrar um grupo terrorista”, classificação dada pelo presidente Erdogan ao Movimento Hizmet, fundado por um dos opositores a seu governo.

A Conectas teve um importante papel no julgamento do caso, tendo sido admitida como amicus curiae (amiga da corte) e realizou uma sustentação oral no dia do julgamento apontando que se tratava de uma perseguição política por parte do governo turco e que a Lei de Migração brasileira veda a possibilidade de extradição para países cujo sistema judiciário está comprometido e não há condições para um julgamento justo e imparcial.

9. Assassinato de defensores e criminalização de ONGs

Ao menos 20 defensores ligados a causas ambientais e a direitos humanos foram assassinados no Brasil em 2018, apontou o relatório “Inimigos do Estado” publicado pela ONG Global Witness. Apesar de ser a primeira vez que o país não aparece como o Estado mais perigoso para esse tipo de defensores desde 2012, o ano foi marcado pelo assassinato de lideranças indígenas, como Emyra Wajãpi. Em maio, a Conectas denunciou violações de direitos de povos indígenas pelo governo brasileiro, em audiência realizada na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Em reunião do Mercosul, mais de 40 organizações manifestaram repúdio à criminalização da ONG Projeto Saúde e Alegria e a prisão de quatro brigadistas em Alter do Chão. As instituições também denunciaram à ONU e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a falta de transparência das investigações e solicitam apoio de atores internacionais para evidenciar os recentes ataques à atuação da sociedade civil e a constante tentativa de criminalização de defensores de direitos humanos por parte do atual governo brasileiro.

10. Contaminação de óleo no Nordeste

No segundo semestre do ano, um derramamento de petróleo de origem desconhecida atingiu o litoral de diversos estados do país, especialmente na região Nordeste. Na oportunidade, regiões que já sofriam com impactos do modelo de desenvolvimento, como a cidade de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, onde está o Porto de Suape, também foram afetadas pelo derramamento do petróleo.

A Conectas, em parceria com outras organizações locais e internacionais, enviaram um apelo urgente sobre o tema à relatores da ONU e acompanhou a visita ao local de Baskut Tuncak, relator especial da ONU sobre resíduos tóxicos.

11. Tentativas de enfraquecimento da Lei de Migração

O ano de 2019 foi marcado por uma constante ofensiva do governo federal para enfraquecer direitos adquiridos por migrantes e refugiados nos últimos anos. Em julho, o ministro Sérgio Moro publicou a Portaria 666, que instituiu a possibilidade de deportação sumária de “pessoas perigosas”.

Criticada por sua arbitrariedade e por contrariar direitos estipulados pela nova Lei de Migração, a portaria foi endossada pela emenda a um projeto de lei (PL 1928/2017) apresentada no Senado Federal, por demanda do próprio ministro, que visava modificar a legislação e endurecer as regras de entrada e permanência de migrantes no país.

Após grande pressão das organizações que acompanham a pauta junto ao Legislativo, o projeto de lei foi arquivado. A Portaria 666 foi substituída por um novo documento, a Portaria 770, com a supressão de pontos mais críticos como a deportação sumária, mas que segue duramente criticada pelas entidades.

12. Eleição do Brasil ao Conselho de Direitos Humanos da ONU

Em 2019, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, órgão de promoção e proteção dos direitos humanos em todo o mundo, renovou alguns de seus assentos para o mandato do biênio 2020-2022. Os assentos do Grulac (Grupo Regional da América Latina e Caribe) foram disputados entre Venezuela, Costa Rica e Brasil.

Às vésperas das eleições, a Conectas se manifestou contra a escolha do Brasil para ocupar o assento, diante das constantes violações de direitos cometidas pelo estado brasileiro ao longo do ano, e estimulou que outros países do grupo fossem candidatos à vaga, a fim de estimular eleições competitivas. O Brasil acabou sendo eleito para um novo mandato de três anos. Após reeleição, Conectas reiterou que continuará monitorando e denunciando posturas da diplomacia brasileira que desrespeitem os direitos humanos e ferem preceitos constitucionais.

13. São Paulo registra 154 presos por dia por tráfico de drogas

Dados da Polícia Civil revelam que 154 pessoas são presas diariamente no estado de São Paulo por suspeita de tráfico de drogas. Os números foram obtidos pela GloboNews por meio da Lei de Acesso à Informação e apontam que o número de detidos por tráfico aumentou 21% nos últimos dois anos.

Em novembro, a Conectas lançou o relatório  “Prisão a qualquer custo” que evidencia que o superencarceramento seria menor caso os tribunais levassem em conta um dos principais mecanismos na redução deste tipo de pena: a figura do tráfico privilegiado.

A pesquisa mostra que a Justiça paulista tem tipificado o tráfico de drogas como crime hediondo, mesmo quando se trata de casos de réu primário e sem envolvimento com organizações criminosas, contrariando o entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal).

Hoje o Brasil tem quase 200 mil pessoas presas por crimes ligados ao comércio de drogas.

Outro fator importante para o desencarceramento, a descriminalização das drogas para uso pessoal esteve duas vezes na agenda do STF em 2019. A votação, em andamento desde 2015, teve pedido de vista pelo então ministro Teori Zavascki e deveria ter sido retomada em junho deste ano, tendo sido adiada pelo presidente Dias Toffoli para novembro e novamente cancelada. A matéria segue sem data para apreciação.

14. Supremo derruba prisão após condenação em segunda instância

As regras sobre o início da execução de penas de prisão no país mudaram no dia 7 de novembro de 2019. Na ocasião, o STF decidiu rever a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância, alterando um entendimento adotado desde 2016 e que contrariava o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 5º da Constituição.

No primeiro dia de sessão, autores das ações e entidades interessadas se manifestaram em favor da condenação após se esgotarem todos os recursos possíveis. A Conectas foi representada por Silvia Souza, assessora de advocacy da organização. Silvia foi a única mulher negra a fazer uma sustentação oral no julgamento.

15. “Pacote Anticrime” é aprovado no Congresso Nacional

O PL (Projeto de Lei)  6.341/2019, mais conhecido como “pacote anticrime” foi aprovado no dia 11 de dezembro pelo Senado e agora segue para sanção presidencial. O projeto modifica a legislação penal e a torna mais rigorosa.

Apresentado em fevereiro deste ano, o pacote trazia promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro, como a chamada excludente de ilicitude, que ampliaria as hipóteses em que os agentes de segurança não são responsabilizados por matar ou ferir alguém em serviço.

O texto final é resultado de um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que fez diversas modificações nas propostas originalmente apresentadas pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro e pelo ministro de STF, Alexandre de Moraes. Ao todo, 11 pontos foram retirados, dentre eles a excludente de ilicitude. Temas importantes foram incluídos, como o ‘juiz de garantias’, que cuidará da análise de pedidos de prisão e produção de provas ao longo da instrução da ação penal, garantindo maior isenção ao juiz que julgará o processo.

No entanto, a proposta ainda manteve retrocessos a garantias fundamentais que, em geral, atingem com maior afinco a população negra pobre e periférica, historicamente alvo preferencial do sistema prisional.

Um estudo inédito produzido pela Conectas em outubro deste ano, mostra como essa população é mais impactada pela aplicação de fiança e multa pelo sistema de justiça criminal e suas consequências.

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