Em 5 de novembro de 2015 aconteceu um desastre socioambiental de proporções inéditas no Brasil: o rompimento da barragem de Fundão, na região de Mariana (MG), que despejou mais 40 milhões de metros cúbicos de lama tóxica. Dezenove pessoas morreram soterradas.
Os rejeitos de minério destruíram completamente todo o distrito de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e outras comunidades próximas, e causaram danos irreparáveis à Bacia do Rio Doce e ao ecossistema local, chegando a atingir o mar no Espírito Santo.
Quatro anos depois, apesar de idas e vindas entre ações judiciais e acordos estabelecidos entre os governos dos dois Estados, a União e a empresa responsável pela tragédia- a mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela BHP-, a situação permanece muito semelhante com o momento da calamidade.
“É chocante ver como, quatro anos depois, a situação permanece praticamente igual. Há milhares de pessoas sofrendo sérias privações, pois até hoje nem sequer receberam auxílio emergencial”, aponta Julia Neiva, coordenadora de Direitos Socioambientais da Conectas.
Matriz de danos
Organização que realiza o processo de assessoria técnica aos atingidos, além de prestar ajuda humanitária, a Cáritas Brasileira construiu uma matriz de danos em parceria com moradores dos distritos impactados e com a colaboração de universidades e pesquisadores como uma tentativa de valorar os prejuízos das vítimas.
Este levantamento levou em conta os prejuízos materiais e imateriais das vítimas, ou seja, tanto os prejuízos relativos à perda de patrimônio quanto a perda do acesso a rotinas diárias típicas da vida que levavam antes da tragédia.
“As empresas instalaram, por meio da Fundação Renova, uma fase de negociação extrajudicial, mas da forma como está sendo feita tem representado uma violação dos direitos dos atingidos”, explica Gladston Figueiredo, coordenador operacional da Cáritas. “A Renova apresenta uma proposta e o atingido aceita ou não. Se ele tenta argumentar ou faz uma contraproposta é dito a ele que este não é o espaço”, conclui.
O MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) calcula que cerca de duas milhões de pessoas foram atingidas, mas apenas 8.537 foram indenizadas por danos gerais e 254 mil, por desabastecimento de água.
Em 2018, a Conectas produziu um documento no qual descrevia as mudanças necessárias para que a reparação às vítimas da tragédia do Rio Doce respeitasse as normas internacionais em direitos humanos. Leia aqui.
Relatos de vítimas e familiares
Entre os dias 3 e 4 de novembro, a Conectas participou de uma série de atividades promovidas pelos atingidos, Caritas e Ministério Público Estadual de Minas Gerais para marcar os quatro anos da tragédia. Além de atos públicos realizados nos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, houve também um seminário em que se discutiu o processo de indenização e reparação. Nesta oportunidade, ouvimos relatos de como a tragédia mudou para sempre a vida das famílias afetadas. Veja a seguir dois destes depoimentos:
Luzia Nazaré, da comunidade de Paracatu de Baixo.
“Antes eu tinha uma vida. Fazia projeção da minha vida, do que eu que ia fazer hoje e onde que eu ia chegar no final do ano. Sonhos todos interrompidos com essa tragédia-crime, né? A gente fala que foi tentativa de homicídio. E se ela fosse em dezembro, acho que nem eu estaria aqui contando esta história.
(…)
A minha vida era uma vida em que eu fazia cerimonial, arrumava noivas, e na época eu trabalha numa loja de noivas, então eu lidava com sonhos. A partir do dia em que eu tomei conhecimento que a barragem rompeu, era três e meia da tarde, eu estava trabalhando, com minha sobrinha, e a gente tava fazendo alinhamento final. E, nisso, o telefone ela tinha várias chamadas do namorado dela, aí ela falou assim: “tá falando que a barragem rompeu e que matou muita gente em Bento Rodrigues. E tá falando que tá descendo para Paracatu”. Eu falei: “Você tá ficando louca, menina? Tá ficando doida? A barragem estourar? Acabar com Paracatu? Nunca, jamais!”.
(…)
Na hora que meu marido chega, abre o portão: “Ô, muié, acabou tudo. Não sobrou nada da nossa casa. Não sobrou nada, nada, nada. Acabou tudo.” Ele falou que a única coisa que deu para ouvir foi o telhado da casa do vizinho desabando, mas que aí eles saíram correndo porque não dava pra ficar mais lá, não. Por que, até então, eles não acreditam que ia vir esse tsunami de lama, de rejeito tóxico, né?
Mirella Lino, da comunidade de Ponte do Gama, na zona rural de Mariana.
No dia 5 de novembro de 2015, eu tinha exatamente 17 anos, e eu soube que houve o rompimento de uma barragem e só. Eu estava indo pra escola, naquele dia como eu sempre fazia, eu tinha 17 anos e estava no terceiro ano do ensino médio. É uma comunidade rural, bem pequena, Ponte do Gama. Então, eu era a única aluna do ensino médio, de Ponte do Gama, que tinha que se deslocar até Monsenhor Horta, que era onde tinha escola, que todos estudavam. E a gente foi conversando sobre isso, inclusive: “olha, rompeu alguma coisa aqui perto”, mas só. Era uma informação vaga que a gente tinha. Eu não sabia o que era uma barragem de rejeito de minério e que sabia que a Samarco tava ali, perto de mim, mas não sabia exatamente o que ela fazia, o que ela era, então, eu não liguei os fatos. Eu não consegui estabelecer uma ligação entre o rompimento da barragem e a minha casa.
Então, a gente foi conversando sobre isso e, chegando em Monsenhor Horta, na escola, todos comentavam que havia destruído Bento Rodrigues. E eu tentava, de toda forma, imaginar como que tinha destruído porque eu realmente não tinha conhecimento, eu não sabia o que era. E aí, depois, os professores chegavam contando que tinha dizimado Bento, que não existia mais Bento Rodrigues e que Bento Rodrigues estava debaixo de lama.
(…)
Só depois que uma colega chegou me dizendo que a ponte de Paracatu tinha caído. E aí, eu pensei: “Se a ponte caiu, essa coisa desceu pelo rio e passou no Gama primeiro”. Aí, eu comecei a me desesperar um pouco. Liguei para o motorista que tava aqui em Mariana, na hora, e eu perguntei, primeiro, o que era, e se poderia chegar na minha casa. Ele disse que já tinha chegado. Que era uma coisa muito grande. Que era um monte de água, na verdade. E eu pensei que se chegasse na minha casa, na proporção que chegou em Bento Rodrigues, eu estaria órfã, porque eu tava longe de toda minha família e de toda a comunidade naquele momento, era por volta de sete e meia, intervalo da aula, que foi quando eu realmente tinha certeza que havia se rompido algo muito grande, algo monstruoso e que havia chegado à minha casa e a minha única preocupação era se estaria órfã ou não. Se eu tinha perdido todo mundo, incluindo família e amigos.