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20/02/2017

Vítimas e algozes

Quem praticou a tortura e quem ousou denunciá-la?



“Eles disseram que dava nada bater porque não ia ficar marca”, diz E.A.D., de 23 anos, à juíza no Fórum Criminal da Barra Funda, referindo-se à própria pele negra. Ele e P.S.A.S. foram presos em flagrante sob a acusação de roubo no centro da capital. Ambos negam. De acordo com E.A.D., tudo o que ele fez foi pegar um Bilhete Único que havia encontrado no chão.

“Eles engatilhou a metralhadora na cara do rapaz aí. Eles engatilhou o revólver em mim aqui [apontando a barriga]”, afirma. “Você teria condições de identificar os policiais?”, pergunta a magistrada. “Eu não tenho medo. Eu sei que eles vão fazer represália contra mim. Mas eu tenho sim [condições de identificá-los].”

A juíza encaminha os dois homens ao IML para realização do exame de corpo de delito e expede ofício para que o caso de violência seja analisado pelo DIPO 5 – Divisão de Expediente da Polícia Judiciária e Serviços Auxiliares, órgão responsável pelo recebimento e processamento dos casos de violência policial.

A pedido do Ministério Público, que não faz nenhuma pergunta sobre as agressões sofridas pelos dois homens, a prisão em flagrante é convertida em prisão preventiva.

O caso de E.A.D e P.S.A.S. ilustra com precisão o perfil das pessoas que compõem o universo da pesquisa “Tortura Blindada”. A análise de 393 casos em que houve relatos ou sinais de tortura ou maus-tratos no contexto das audiências de custódia permite inferir que as vítimas preferenciais da violência no momento da prisão são homens negros acusados de roubo e que os maiores perpetradores são os policiais militares.

De acordo com os testemunhos colhidos pelo estudo, a maior motivação para as agressões é a obtenção de confissão e, em geral, a violência ocorre no mesmo lugar da prisão em flagrante.

De acordo com a advogada Sylvia Dias, delegada da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil e revisora de “Tortura Blindada”, o perfil das vítimas de tortura não difere do perfil das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional brasileiro.“Uma outra característica que é particularmente preocupante é a naturalização que as próprias pessoas custodiadas atribuem à tortura e os maus-tratos sofridos no momento da prisão. É alarmante constatar que uma grande parcela dos cidadãos e cidadãs brasileiros, ao serem submetidos diariamente a padr˜øes de violência nas mãos das forças policiais, acabam ‘normalizando’ atos de violência física e psicológica como se fossem algo aceitável e inquestionável”, afirma. “Obviamente, essa naturalização e falta de percepção que seus direitos e sua integridade estão sendo violados leva a uma subnotificação”, completa.

 

Assim como E.A.D. e apesar do medo de represálias por parte dos policiais, que permanecem na sala durante toda a audiência de custódia, 56% das pessoas presas afirmam que conseguiriam reconhecer seus agressores.

Em pelo menos 19% dos casos, sobretudo em episódios de violência praticada em via pública por policiais militares, os presos foram levados à delegacia por seus próprios algozes. Isso significa que os dados pessoais e funcionais dos agentes suspeitos constam nesses boletins de ocorrência, abrindo a oportunidade para que membros das corporações policiais sejam investigados e responsabilizados.

Audiências-fantasma

Em algumas das audiências monitoradas pela pesquisa foi impossível conhecer as características das pessoas presas ou detalhes sobre o momento do flagrante. Isso porque os custodiados estavam internados em hospitais por causa de ferimentos ocorridos no momento da prisão. Nesses casos, conhecidos como audiências-fantasma, magistratura, promotoria e defensoria decidem sobre o destino dos presos sem sua presença.

Entre junho e novembro de 2015, a Conectas acompanhou e analisou três audiências-fantasma no Fórum Criminal da Barra Funda. Em nenhuma delas a ausência do preso em flagrante foi questionada pelos juízes ou promotores. A hospitalização tampouco levantou suspeitas sobre a ocorrência de tortura ou maus-tratos no momento do flagrante. Em nenhum dos casos foi determinada a realização do exame de corpo de delito ou se mencionou a possibilidade de realizar uma nova audiência na presença da pessoa presa depois da alta médica.

Para a Conectas, é possível que os presos internados em unidades hospitalares tenham sido justamente as vítimas mais graves de violência no período da pesquisa. Obviamente, como está impossibilitada de comparecer em juízo, a pessoa não tem a oportunidade de denunciar eventuais episódios de violência, prejudicando totalmente a efetividade das audiências de custódia na perspectiva do combate à tortura e maus-tratos.

Para a advogada, socióloga e pesquisadora da área de Justiça Criminal Fernanda Emy Matsuda, que também revisou o estudo “Tortura Blindada”, “é preciso ir além do rito”. “Há uma excessiva preocupação com a forma em detrimento do conteúdo, e a realização da audiência-fantasma demonstra isso de maneira eloquente ao corresponder meramente ao cumprimento de uma exigência formal esvaziada de sentido”, afirma.

Sylvia Dias acredita que a realização de audiências-fantasma é de “extrema gravidade”. Para ela, “seria justamente esse tipo de situação que deveria suscitar um alerta maior de preocupação quanto à ocorrência de grave violência ou abuso no momento da prisão. As audiências de custódia como instrumento de prevenção à tortura ou maus-tratos não podem permitir nenhuma exceção”.

 


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