Depois de analisar 393 casos que passaram pelas audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, a Conectas protocolou na segunda-feira (20/2) representações junto à Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, à Procuradoria-Geral de Justiça do Estado e ao Conselho Superior da Defensoria Pública.
Nos documentos, a organização apresenta dados e casos levantados pela pesquisa “Tortura Blindada” que evidenciam a omissão e negligência dos órgãos do sistema de Justiça diante de testemunhos de tortura e maus-tratos. A entidade pede que a conduta de juízes e promotores seja averiguada e que as instituições promovam melhorias concretas e imediatas em seus protocolos de atuação nas audiências de custódia.
Segundo o estudo, que fundamenta as representações, em 33% das ocasiões os juízes não perguntaram aos presos sobre a ocorrência de violência no momento da detenção. Entre os promotores, o descaso foi ainda maior: em 80% das audiências em que a pessoa presa relatou ter sido vítima de tortura ou maus-tratos a promotoria não fez qualquer pergunta sobre o ocorrido.
Veja aqui mais dados apresentados pela pesquisa “Tortura Blindada” sobre a atuação dos órgãos do sistema de Justiça.
“A pesquisa demonstrou que as audiências de custódia, no que se refere à repressão à tortura e violência policial, estão funcionando em rito que reforça a submissão e desumanização às quais as vítimas de tortura são submetidas”, afirma trecho da representação remetida ao corregedor geral de Justiça, o desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças.
Além da inação e da postura intimidatória dos juízes na interação com as vítimas de violência, o documento critica o encaminhamento que é dado aos casos. Hoje, quando decidem averiguar o ocorrido, os magistrados se limitam a repassar o processo ao DIPO 5 (Divisão de Expediente da Polícia Judiciária e Serviços Auxiliares), responsável pelo recebimento e processamento de suspeitas de violência policial.
De maneira protocolar, as denúncias que chegam a esse segundo órgão são remetidas às corregedorias das polícias Civil e Militar – o que significa que, em última instância, os suspeitos de praticarem tortura estão recebendo informações e imagens das vítimas que ousaram denunciá-los.
“O envio da comunicação de crime aos juízes do DIPO 5 encerra, pela dilação temporal e comprometimento da segurança da possível vítima, qualquer possibilidade de investigação tempestiva e perpetua a impunidade da tortura”, afirma a representação.
A entidade também critica de maneira contundente a atuação dos promotores durante as audiências. No documento protocolado junto ao procurador-geral de Justiça, Gianpaolo Poggio Smanio, a Conectas reforça que a instituição tem a obrigação constitucional de vigiar o trabalho das polícias e que essa função não pode ser deixada de lado quando promotores assumem o papel de parte em uma ação penal.
No documento, são listados diversos casos em que os representantes do Ministério Público negligenciam, colocam em xeque ou mesmo justificam episódios de violência policial narrados pelos presos em flagrante. Para a entidade, o padrão de conduta dos promotores é o da omissão.
“Omitem-se no questionamento, omitem-se na requisição de diligências, omitem-se na requisição de abertura de inquérito policial. De maneira reiterada, respondem aos relatos ora com silêncio, ora com inócuos encaminhamentos, ora com a defesa desinformada e irresponsável da legitimidade e legalidade da atuação policial”, afirma trecho do documento.
Para a advogada Sylvia Dias, delegada da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil e revisora de “Tortura Blindada”, “as audiências de custódia constituem hoje, sem sombra de dúvida, um dos instrumentos mais poderosos para reduzir de maneira significativa a violência policial e mudar a cultura dominante e amplamente aceita de violência e brutalidade que permeia a atuação das forças de segurança”.
Mas faz uma ressalva: “para que esse potencial se materialize, é preciso que certos critérios e parâmetros quanto à condução da audiência de custódia sejam colocados em prática de maneira a criar as condições adequadas para que as pessoas custodiadas se sintam seguras para relatar casos de maus-tratos ou tortura sem temor de sofrer represálias ou algum tipo de intimidação em razão da denúncia feita”.
O Conselho Superior da Defensoria Pública também foi notificado. Apesar de ressaltar que os defensores que atuam nas audiências de custódia são, em geral, comprometidos com o combate à violência institucional, a Conectas pediu mais firmeza no combate às posturas da Magistratura e do Ministério Público.
A organização também apontou para diferenças entre a conduta dos defensores que atuam exclusivamente no DIPO (Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária) e a conduta dos defensores de outras áreas que são designados para audiências de custódia. De acordo com a pesquisa, os primeiros intervieram mais vezes diantes de casos com relato de tortura e maus-tratos.
“A violência policial no momento da detenção não é novidade no Brasil, mas a pesquisa nos dá evidências sólidas de que a prática é negligenciada – e por vezes respaldada – pelos atores do sistema de Justiça, o que é gravíssimo e contraria as leis e normas nacionais e internacionais”, afirma Rafael Custódio, coordenador de Justiça da Conectas.
“Por isso, não hesitamos em denunciar aos órgãos competentes o comportamento de representantes da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria e do IML diante de casos de tortura. Esperamos que essas instituições atuem de maneira rápida e imparcial, investigando eventuais infrações disciplinares e também determinando mudanças imediatas em seus protocolos de atuação”, completa.
A opinião é compartilhada pela advogada, socióloga e pesquisadora da área de Justiça Criminal Fernanda Emy Matsuda, que também revisou o estudo “Tortura Blindada”. “A violência policial encontra respaldo na falta de preocupação das autoridades em apurar denúncias dessa natureza”, afirma.
“Essa operação que reveste de legalidade a prisão (ainda que ilegal) tem diversos efeitos: põe em descrédito a vítima da violência, valida a atividade policial violenta e invisibiliza as violações de direitos que acontecem no momento da prisão. Assim, mais do que tolerância, o que pressupõe uma certa passividade dos profissionais do sistema de Justiça, parece haver mesmo uma cumplicidade, a deliberada intenção de corroborar o trabalho policial por meio de mecanismos burocráticos que normalizam a violência”, afirma.