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20/02/2017

Negligência estrutural

Um terço dos juízes não questiona presos sobre violência policial no momento do flagrante



A maior parte dos relatos sobre violência policial que se ouvem nas audiências de custódia é provocada por perguntas feitas pelos juízes, que são sempre os primeiros a falar. De acordo com a pesquisa “Tortura Blindada”, no entanto, em um terço das ocasiões os magistrados perderam essa oportunidade e não fizeram qualquer questionamento sobre tortura ou maus-tratos ao preso.

O descaso com a apuração da violência – uma das principais prerrogativas das audiências de custódia – continua quando a palavra é tomada pelo representante do MP (Ministério Público), sempre o segundo a se pronunciar. De todos os casos que passaram pelo juiz sem qualquer pergunta sobre agressões, o promotor interveio em apenas 9%.


Vale destacar que o MP é o único órgão do sistema de Justiça com a prerrogativa constitucional de controlar a atividade das polícias. Em outras palavras: ao não perguntarem sobre a ocorrência de violência no momento da detenção, os promotores descumprem uma obrigação constitucional.

É comum, ainda, os promotores afirmarem que o relato de tortura é, na verdade, um instrumento para “livrar a cara” das pessoas presas – o Código de Processo Penal determina que o flagrante seja relaxado em caso de ilegalidade no momento da detenção.

Os dados da pesquisa refutam esse argumento: na maioria das vezes em que houve testemunho (72%) a prisão em flagrante foi convertida em prisão provisória. Apenas em uma parcela muito reduzida dos casos (4%) houve relaxamento do flagrante – e sempre por motivos alheios à denúncia de agressão.

Depois da promotoria, a palavra passa à defesa. A pesquisa mostra que, apesar de serem os últimos a falar e de não terem a obrigação constitucional de fiscalizar a polícia, os defensores públicos ou advogados particulares abordaram o tema da tortura mais vezes que o Ministério Público.

O gráfico abaixo ilustra como esse fluxo acontece nas audiências:

Depois da manifestação de todas as partes, cabe ao juiz decidir se o relato de violência será ou não encaminhado. Os magistrados não tomaram nenhum tipo de providência em mais de 25% dos casos analisados pelo estudo. Em apenas 1 das 393 denúncias o juiz determinou a abertura de inquérito policial. Quando decidiram pela apuração, os juízes optaram em 72% das vezes enviar o caso ao DIPO 5 (Divisão de Expediente da Polícia Judiciária e Serviços Auxiliares), responsável pelo recebimento e processamento de suspeitas de violência policial.

Na prática, o DIPO 5 se limita a encaminhar as evidências de tortura às corregedorias da Polícia Civil e da Polícia Militar. Em outras palavras: o que o DIPO 5 faz é enviar as denúncias às próprias instituições suspeitas. Além disso, em 14% dos casos, esse encaminhamento foi feito de maneira equivocada: um caso que deveria ter sido remetido à Corregedoria da Polícia Militar, por exemplo, acabou parando por engano na Corregedoria da Polícia Civil.

Quando os casos chegavam ao destino correto, a situação não era muito melhor – e, no caso da Polícia Militar, ela era agravada, pois os documentos eram remetidos ao batalhão onde trabalha o policial ou o grupo de policiais acusado. Ou seja, os próprios suspeitos pelas práticas de tortura e maus-tratos receberam documentos com nome e endereço de quem acusava, além de um vídeo com rosto, voz e depoimento das vítimas.

Os órgãos corregedores das polícias não forneceram informações sobre o andamento das apurações, mesmo após pedidos baseados na Lei de Acesso à Informação.

Juízes | “Eu quero saber se teve porrada”

Os dados coletados por “Tortura Blindada” mostram que a participação da Magistratura nas audiências de custódia está sujeita e condicionada às particularidades de cada juiz, como se o combate e a prevenção da tortura e maus-tratos dependessem muito mais de convicções pessoais do que de um protocolo institucional.

Importante ressaltar que em 15/12/15, pouco depois do período de coleta da pesquisa, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicou uma resolução (213) estabelecendo diretrizes para os juízes que atuam nas audiências de custódia. Esse documento traz um protocolo específico sobre o que deve ser feito pelos magistrados diante de testemunhos de violência.

Dos 11 juízes que atuaram em mais de 15 audiências durante o período da pesquisa, apenas cinco perguntavam sistematicamente a todos os presos se haviam sofrido tortura ou maus-tratos. Os demais faziam questionamentos sobre violência policial apenas eventualmente. Nem mesmo sinais claros de agressões como manchas de sangue, roupas rasgadas, hematomas e feridas alteraram o comportamento de alguns magistrados.  

Quando o relato surgia espontaneamente ou provocado pela intervenção do MP ou da Defensoria era comum que o juiz demonstrasse desconfiança, quando não tentava deslegitimar a palavra do preso em contraposição à palavra dos policiais. Em 18% das ocasiões em que intervieram, os magistrados insinuaram que o preso estava mentindo. Em 14% das vezes, as denúncias foram naturalizadas, como se a tortura fosse uma questão estritamente privada: “Do nada eles te agrediram? Por que a polícia faria isso com você?”

Em 27% das vezes em que o juiz questionou o preso sobre agressões no momento da prisão, perguntou, em seguida, se ele era conhecido dos policiais. Outras vezes, as perguntas pareciam relativizar a violência: “Tapa na cara, só?”

Para a advogada Sylvia Dias, delegada da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil e revisora de “Tortura Blindada”, comentários do tipo “foi só um chute”, “o policial deve ter agido dessa maneira porque houve resistência” ou “só choque?” colocam esvaziam as audiências de custódia de sentido e legitimam a tortura, os maus-tratos e a violência policial.

Apesar desse quadro de evidente descaso de alguns membros da Magistratura com as denúncias, a pesquisa também constatou a importância do envolvimento dos juízes no combate à tortura. Em quase 60% de todos os casos analisados, o testemunho surgiu a partir de uma pergunta feita pelo juiz.

Segundo Dias, “o relatório também registra que alguns magistrados encaminharam o caso para investigação em 100% das vezes, o que revela uma atitude de real comprometimento com o enfrentamento à tortura e à violência institucional que deveria permear a atuação de todo o Judiciário, e não somente a de alguns de seus representantes”.

Promotores | “Se não estivesse roubando, não estava apanhando”

A atuação do Ministério Público também se provou problemática, apesar de ser a única instituição com prerrogativa constitucional de controlar a atividade policial e a única com membros destacados exclusivamente para as audiências de custódia no período analisado. Em 80% dos casos em que houve relato de tortura e maus-tratos pelos presos, a promotoria não tomou qualquer tipo de atitude.

Ao contrário: na maior parte das vezes em que se pronunciaram sobre o fato, os promotores contestaram os testemunhos, desacreditando totalmente a pessoa presa. Em geral, isso foi feito dando mais peso à palavra dos policiais, elencando elementos do boletim de ocorrência ou do auto de prisão em flagrante preenchido na delegacia ou realçando eventuais antecedentes criminais do custodiado.

“Percebemos uma tendência extremamente preocupante de parte destes atores que é a de crer que a pessoa presa ou custodiada sempre mente, ou que alega a tortura ou violência policial como uma tentativa de ‘livrar sua cara’ ou de conseguir ser colocado em liberdade pela violência sofrida”, afirma Dias.

Como resultado, em quase todas as audiências não houve qualquer manifestação do MP no sentido de pedir a apuração das denúncias. Quando o faziam, alguns promotores achavam necessário justificar sua atitude como uma medida meramente protocolar, uma vez que a audiência estava sendo gravada: “não quero depois que olhem a filmagem com o cara todo arrebentado e digam que eu não falei nada.”

Da mesma maneira que no caso dos juízes, a pesquisa constatou, por outro lado, a importância do envolvimento dos promotores na prevenção e no combate à tortura e os maus-tratos. Descobriu-se, por exemplo, que é muito mais provável um juiz acatar um pedido de investigação quando ele é encaminhado pelo MP – 93% dos pedidos de apuração feitos pelos promotores foram aceitos pela Magistratura.

Defensores públicos | “Foram os mesmos PMs que te levaram para a delegacia?”

Na análise da atuação da defesa, seja por defensores públicos ou por advogados particulares, o que se constatou é que nenhuma intervenção foi feita para deslegitimar os relatos de violência: em 49% dos casos houve algum tipo de manifestação no sentido de obter mais dados para a apuração dos fatos. Ainda assim, os defensores não demonstraram disposição em enfrentar juízes e promotores nas ocasiões em que estes desacreditaram, desrespeitaram ou foram agressivos com os custodiados.

A pesquisa mostrou que os defensores públicos alocados no DIPO (Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária), responsável por fiscalizar os atos do inquérito policial, estão mais atentos aos casos de violência que outros defensores públicos de outras áreas designados para atuar nas audiências de custódia. O índice de reação diante de testemunhos de tortura e maus-tratos foi de 67% entre os defensores do DIPO e de apenas 32% entre os designados.

As conclusões do estudo reforçam, ainda, a importância da entrevista que a pessoa presa tem com o defensor antes de entrar na audiência. É nesse momento que os relatos costumam aparecer pela primeira vez – daí a necessidade de que ela aconteça longe dos promotores, juízes e sobretudo dos policiais da escolta. No período da pesquisa, a conversa que deveria ocorrer reservadamente foi realizada sempre no corredor, perto da sala de audiência e na presença de pelo menos um policial militar.

Durante as audiências, os defensores foram os únicos que questionaram os presos sobre a existência de testemunhas e outros elementos como fotografias e filmagens que pudessem comprovar as denúncias. Essas informações, no entanto, são sistematicamente ignoradas: a pesquisa não observou um único caso em que as informações sobre testemunhas foram incluídas nos autos da audiência, assim como imagens de câmeras de vigilância ou dados de GPS das viaturas.

Instituto Médico Legal | “Concluo que a vítima sofreu lesões de natureza leve”

Uma das mais importantes mudanças introduzidas pelas audiências de custódia foi a criação de uma estrutura própria para o IML (Instituto Médico Legal) dentro do Fórum Criminal da Barra Funda. Antes, a perícia antecedia o encaminhamento do preso ao centro de detenção, longe das instituições do sistema de Justiça. Agora, o exame de corpo de delito pode ser feito imediatamente após a audiência – ainda que em uma sala estreita e improvisada.

Embora os policiais militares não tenham como praxe entrar na sala durante o exame (isso aconteceu apenas algumas vezes), a pesquisa observou que os agentes da escolta ficavam encostados na porta, de onde era possível escutar toda a conversa entre custodiado e médico.

Vale ressaltar que, administrativamente, o IML está vinculado à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o que compromete sua independência para averiguar crimes cometidos  por agentes do próprio Estado, em particular pelas polícias (vinculadas à mesma secretaria).

Os 251 laudos analisados por “Tortura Blindada” demonstram que, na maioria das vezes (73%), a pessoa presa reproduziu com maior ou menor detalhamento o relato da audiência ao médico. Em 16% dos casos, a descrição dos fatos feita no laudo é bem mais sucinta e com menos informações do que a apresentada pelo custodiado na audiência. Um exemplo são as violências psicológicas, que foram sempre ignoradas pelos peritos.

Também é preocupante o tratamento específico dado às mulheres. Uma presa que relatou abusos sexuais, por exemplo, recusou-se a tirar a roupa diante do médico. Ao invés de substituir o profissional, como deveria ser feito, o laudo foi deixado em branco.

Em apenas 3% dos casos pediu-se a realização de exames complementares para aprofundar a análise da violência sofrida – em nenhum deles esses exames foram de fato realizados até o término do período de coleta de informações, em maio de 2016. Em 11% dos casos, por outro lado, a descrição do médico continha elementos novos, como detalhes sobre o tipo de agressão, uso de objetos e partes do corpo atingidas. Nesses episódios, as descrições das lesões também foram mais detalhadas – o que revela, em última instância, que a conduta pessoal do perito pode ser decisiva para o resultado do laudo.

 


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