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Pesquisa inédita: Tortura Blindada

Como as instituições do sistema de Justiça perpetuam a violência nas audiências de custódia



A câmera começa a gravar a audiência. A lente foca E.S.N., morador de rua e usuário de crack de 31 anos, acusado de receptação e resistência. Um dos olhos está semicerrado. O rosto e o pescoço estão marcados por diversas manchas roxas. Ele responde com a cabeça baixa às perguntas da juíza.

“Sua mãe trabalha? Sua mãe sabe que o senhor está na rua? O senhor estudou? Por que parou de estudar? Você tem irmãos? Eles trabalham? Você faz uso de que droga? E como é que é? Todo dia, toda hora?”

Ao explicar o que estava fazendo no momento da prisão (“me pagaram R$ 10 para descarregar o carro”), E.S.N espontaneamente descreve a abordagem policial. Explica que fugiu por medo. Foi alcançado por um dos agentes que, depois de agarrar-lhe pelo pescoço, tentou aplicar uma rasteira e caiu com ele no chão. Outro policial teria chegado e começado o espancamento, principalmente no rosto e na cabeça. 

A juíza então pergunta se o preso saberia reconhecer os agressores. Ele diz que sim e fornece o nome de um deles. A magistrada pergunta, ainda, se outras pessoas teriam testemunhado a ação. Ele afirma novamente que sim e indica que haveria vídeos registrando o momento. 

A palavra passa à promotora: “as agressões noticiadas são produto da resistência perpetrada, e não agressões policiais como quer dizer nessa audiência o autuado”, afirma em defesa dos policiais. Depois, a representante do Ministério Público se apoia nos antecedentes criminais de E.S.N. para deslegitimar o seu testemunho.

Após a intervenção da Defensoria Pública, que reforça que os indícios de tortura e maus-tratos tornam um flagrante ilegal e que, portanto, a prisão deveria ser relaxada, a juíza decide manter E.S.N. preso e encaminha o processo para o DIPO 5 – Divisão de Expediente da Polícia Judiciária e Serviços Auxiliares, responsável pelo recebimento e processamento de suspeitas de violência policial.

Como outros 72% dos casos analisados pela pesquisa “Tortura Blindada”, o testemunho de E.S.N. foi absorvido pelo sistema de Justiça de maneira estritamente protocolar. Grande parte desses episódios é remetida, com nome e imagens da vítima de violência, para o batalhão policial responsável pela prisão em flagrante – ou seja, acabam com os próprios suspeitos de tortura e maus-tratos.

Também como a maioria dos relatos colhidos e analisados pelo estudo, o de E.S.N. foi absolutamente negligenciado pelo Ministério Público, única instituição do sistema de Justiça com atribuição constitucional de vigiar o trabalho das polícias. De acordo com o relatório da Conectas, em cerca de 80% dos 358 casos em que há relatos de violência, os promotores não fazem qualquer tipo de pergunta para o custodiado. Em 22% das ocasiões em que intervêm de alguma maneira, os promotores usam sua fala para justificar a agressão policial.

Descompromisso com o combate à tortura

Os 393 casos analisados por “Tortura Blindada”, todos colhidos no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, lançam luz sobre um objetivo negligenciado das audiências de custódia: o de prevenir e combater a tortura e os maus-tratos.

Por garantir a apresentação do preso em flagrante ao sistema de Justiça em até 24 horas, esse instrumento permitiria que as marcas e provas da violência não desaparecessem até a audiência de instrução, que acontece meses depois.

Não é o que acontece: o estudo lançado hoje (21/2) pela Conectas evidencia a negligência, omissão e o descompromisso com que a Magistratura, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Instituto Médico Legal lidam com testemunhos de violência apresentados durante as audiências.

Perdemos todos, autoridades, cidadãos, policiais, condenados a viver numa sociedade violenta e marcada por desconfiança nas relações com as autoridades”, afirma a professora da UFSCar Jacqueline Sinhoretto no prefácio à versão completa do estudo.

Para o advogado José de Jesus Filho, mestre em direito penal pela UNB, doutorando em administração pública da FGV-SP e revisor da pesquisa da Conectas, os operadores do sistema de Justiça “mostraram de forma contundente e incontestável que há uma prática judicial intencional voltada à blindagem de torturadores”. “A principal conclusão do estudo é de que a tortura somente toma lugar e se perpetua porque juízes e promotores estão atuando para que ela permaneça impune”, completa.

Segundo a advogada, socióloga e pesquisadora da área de Justiça Criminal Fernanda Emy Matsuda, que também revisou o estudo, “a pesquisa mostra de modo contundente o mecanismo de legitimação dessa violência ao evidenciar de que maneira os diversos atores contribuem para que não haja qualquer responsabilização dos agentes do Estado”. “Ao reconstruir de modo detalhado a atuação dos diferentes profissionais, a pesquisa revela a parcela de responsabilidade de cada um dos órgãos que compõem o sistema de Justiça na legitimação da violência cometida no momento da prisão”, completa.

A opinião é compartilhada pela advogada Sylvia Dias, delegada da Associação para a Prevenção da Tortura no Brasil e revisora de “Tortura Blindada”. Para ela, “as audiências de custódia somente alcançarão um efeito real e efetivo se os casos que são relatados receberem o devido encaminhamento, com a adoção das providências cabíveis para apurar os fatos responsabilizar seus autores”, afirma. “Caso isso não ocorra, teremos o efeito contrário e perverso, que é a legitimação por parte dos atores do sistema de Justiça Criminal de comportamentos ilegais por parte dos agentes de segurança pública”, completa.

Nesse sentido, em relatório sobre visita realizada ao Brasil em 2015, o relator da ONU para a tortura reforçou a importância de que as audiências de custódia sejam formatadas para garantir um ambiente institucionalmente seguro para as denúncias de violência.

Elas também foram alvo de críticas por parte do Subcomitê de Prevenção e Tortura das Nações Unidas, que afirmou em relatório de 2016 que “as audiências de custódia no Brasil não estão desenhadas para prevenir a tortura e os maus-tratos”. “O Subcomitê não está convencido de que os juízes estão dispostos a observar e agir em resposta a sinais de maus-tratos físicos ou mentais por parte dos agentes policiais, ou que os juízes e defensores perguntem rotineiramente sobre como o detido foi tratado na prisão, no transporte e na detenção prévia à audiência.”

Negligência inaceitável

Diante da conclusão que os operadores do sistema de Justiça contrariam as normas e disposições nacionais e internacionais de prevenção e combate à tortura e maus-tratos, Conectas apresentou representações à Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, à Procuradoria Geral de Justiça e ao Conselho Superior da Defensoria Pública demandando a apuração das condutas evidenciadas pela pesquisa e a criação de protocolos que garantam a efetividade desse instrumento no combate à violência policial (clique aqui para saber mais sobre as denúncias).

Navegue pelos conteúdos e entenda por que a conduta de promotores, juízes, defensores e médicos-peritos está ajudando a perpetuar a tortura:


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