[Atualizado em 25 de setembro de 2024]
No Brasil, o direito ao aborto é garantido por lei em casos específicos: quando a gravidez é resultante de estupro, quando há risco de vida para a gestante ou em casos de anencefalia do feto. No entanto, recentemente diversos fatores têm dificultado o acesso ao aborto legal, incluindo legislações locais e atos administrativos.
Para agravar este cenário, está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1904/24, que propõe alterar o Código Penal e equiparar o aborto ao crime de homicídio, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. Se aprovado, o projeto punirá com reclusão de seis a vinte anos tanto a mulher que realizar um aborto após 22 semanas de gestação quanto os profissionais envolvidos no procedimento.
Conectas e outras 22 organizações recorreram às Nações Unidas e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra o projeto de lei. Em um apelo urgente enviado às entidades internacionais no dia 13 de junho, as organizações brasileiras destacaram que a criminalização do aborto viola os direitos de saúde sexual e reprodutiva das mulheres, constituindo uma forma de violência de gênero que pode ser considerada tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante, conforme a Recomendação 35 do Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).
Antes disso, em março, organizações da sociedade civil brasileira, dentre elas a Conectas, já haviam denunciado no Conselho de Direitos Humanos da ONU as violações ao direito ao aborto legal no Brasil.
Conectas lista os obstáculos que estão sendo impostos, além de destacar as recomendações d da ONU para o Brasil garantir esse direito
O Hospital e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, referência no serviço de aborto legal em São Paulo, suspendeu esse atendimento desde dezembro de 2023. Dos cinco hospitais municipais que oferecem o serviço na cidade, o Vila Nova Cachoeirinha era o único a realizá-lo em casos de gestação com mais de 22 semanas, sendo também o único em todo o estado de São Paulo. A interrupção desse serviço em um hospital de referência em uma cidade do porte de São Paulo representa um retrocesso significativo que ameaça diretamente os direitos reprodutivos já estabelecidos por lei.
Além de comprometer o acesso ao aborto seguro e legal, essa suspensão deixa muitas mulheres, meninas e pessoas que gestam sem suporte adequado em situações de extrema vulnerabilidade, agravando um cenário nacional de violação de direitos. Dos mais de 5.500 municípios brasileiros, apenas 200 (3,6%) oferecem o aborto legal nas suas redes de saúde, deixando mais de 37,5 milhões de mulheres em idade fértil sem acesso ao serviço no local onde moram.
Em resposta à suspensão do serviço, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) ingressou com uma Ação Popular no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), pedindo a retomada do procedimento no Hospital Vila Nova Cachoeirinha. A ação, de caráter reativo, visa a garantir que o Judiciário ordene à Prefeitura de São Paulo o restabelecimento do serviço de aborto legal na unidade de referência.
A Conectas, junto ao Anis – Instituto de Bioética, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Católicas pelo Direito de Decidir e Projeto Vivas, apresentou amicus curiae no caso, buscando contribuir com argumentos jurídicos que reforcem a necessidade da retomada do serviço de aborto legal. As organizações defendem que a suspensão do serviço no Hospital Vila Nova Cachoeirinha representa uma violação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, meninas e pessoas que gestam, especialmente em um contexto de escassez de políticas públicas para garantir o aborto legal e seguro no Brasil. Veja mais detalhes sobre o caso neste link.
Uma nova lei sancionada em janeiro de 2024 pelo governo de Goiás incentiva que pessoas gestantes realizem um ultrassom para ouvir os batimentos cardíacos do feto antes de solicitar o aborto legal.. A prática é considerada por especialistas em direitos humanos e saúde reprodutiva como uma forma de tortura psicológica.
Para agravar essa ofensiva aos direitos das pessoas gestantes, a legislação estabelece a data de 8 de agosto como Dia Estadual de Conscientização contra o Aborto, e prevê a realização de palestras e seminários sobre os “direitos do nascituro”. A lei também encoraja a iniciativa privada e ONGs a recomendar “a manutenção da vida do nascituro” para mulheres que desejam abortar.
Ao impor este procedimento, a lei cria uma barreira adicional e desnecessária ao acesso ao aborto legal em casos de estupro, transformando um direito garantido em um processo ainda mais doloroso e traumático.
A Conectas, em parceria com o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e Católicas pelo Direito de Decidir, solicitou ingresso como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7597. A ação, movida pelo PSOL, busca a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 22.537/2024, sancionada em Goiás. Clique aqui para ler mais sobre o caso.
A Nota Técnica do Ministério da Saúde que orientava os profissionais a garantir o acesso ao aborto legal independentemente do prazo gestacional foi suspensa pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, em 29 de fevereiro de 2024, após grande pressão de parlamentares conservadores.A orientação seria crucial para assegurar que todas as mulheres, meninas e pessoas que gestam tenham acesso ao aborto seguro e legal em qualquer estágio da gravidez.
A nota técnica derrubava a recomendação do governo Bolsonaro que limitava o aborto legal até 21 semanas e 6 dias de gestação, além de afirmar que “todo aborto é crime”. Recomendação essa que criou situações como a da menina de 11 anos, estuprada em Santa Catarina, e impedida pela Justiça do Estado de realizar o aborto ao descobrir a gravidez com 22 semanas.
A suspensão da nota técnica aumenta a insegurança e a incerteza tanto para os profissionais de saúde quanto para quem tem direito ao aborto legal, levando potencialmente a um aumento nos procedimentos clandestinos e inseguros. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), suspendida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), também proibiu os médicos de realizarem a assistolia fetal em casos de gestações com mais de 22 semanas nos casos de aborto legal já previstos em lei.
O Projeto de Lei 1904/24 propõe alterações no Código Penal, que equiparam o aborto ao homicídio, mesmo em casos de estupro. Se aprovado, o projeto imporá penas de reclusão de seis a vinte anos para gestantes e profissionais de saúde envolvidos em abortos realizados após 22 semanas de gestação.
Em uma manobra, a Câmara dos Deputados, aprovou, no dia 12 de junho, um requerimento de urgência para acelerar a tramitação do projeto. Agora, o projeto pode ser votado no plenário da Câmara sem passar pelas comissões pertinentes.
Mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães em 2023 no Brasil. A cada 8 minutos, uma menina ou mulher é estuprada. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, 61,4% das vítimas de estupro no Brasil têm até 13 anos (10,4% têm menos de 4 anos) e cerca de 70% dos agressores são conhecidos das vítimas. Esses dados evidenciam a dimensão da violência contra meninas no país.
Portanto, esta proposta legislativa representa uma ameaça direta aos direitos reprodutivos, além de criminalizar as vítimas de violência sexual.
Em maio de 2024, o Brasil passou por uma revisão pelo Comitê da ONU que monitora a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). O Comitê avaliou a situação dos direitos das mulheres no Brasil, e apresentou recomendações importantes para proteger e promover esses direitos. Entre elas, a legalização e descriminalização do aborto, garantindo acesso a serviços seguros.
Organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, enviaram relatórios destacando violações dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. Os relatórios abordam a redução do acesso à contracepção e testes para infecções sexualmente transmissíveis, o agravamento da mortalidade materna durante a pandemia de COVID-19, e as barreiras ao acesso ao aborto legal. Outro relatório foca na gravidez forçada na infância e adolescência, destacando o número alarmante de estupros de vulneráveis e os nascimentos por mães entre 10 e 14 anos.