No Brasil, todo cidadão pode participar da vida política. Esse direito é elemento central do Estado Democrático de Direito e é fundamental para assegurar a pluralidade da representação política.
No entanto, para pessoas que se ocupam de algumas carreiras, especialmente aquelas que detêm o monopólio do uso da força – como polícias e Forças Armadas, é necessário considerar um cuidado adicional a fim de proteger as instituições e a própria democracia.
É nesse contexto que surge o debate em torno da chamada quarentena eleitoral.
A quarentena eleitoral é o período mínimo de afastamento (ou “desincompatibilização”) exigido a determinadas carreiras públicas, como de integrantes do Judiciário, do Ministério Público e, especialmente, das forças de segurança, antes que possam se candidatar a cargos eletivos. O objetivo é simples e legítimo: impedir que essas pessoas usem de suas funções, influência institucional ou estruturas públicas para obter vantagem eleitoral.
No caso das polícias, categoria que tem aumentado sua presença nos pleitos, segundo pesquisas, o cuidado é ainda mais urgente. “Despolitizar e democratizar as forças de segurança é um desafio histórico para o Brasil. A influência político-partidária dentro das instituições militares e policiais é uma ameaça à estabilidade democrática do país”, afirmam, em artigo na Folha de S.Paulo, Júlia Neiva, diretora de Fortalecimento do Movimento de Direitos Humanos da Conectas, Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, e Arthur Mello, coordenador de advocacy do Pacto pela Democracia.
Nos últimos anos, o Brasil viu crescer o número de candidaturas com origem nas forças de segurança, como policiais, militares, bombeiros e também integrantes do Judiciário e Ministério Público. Segundo dados do Instituto Sou da Paz, houve mais de 6 mil candidaturas desse perfil no último pleito, sinalizando uma tendência de politização de corporações historicamente fundamentais para a manutenção da ordem e da justiça.
Embora o exercício da cidadania plena deva ser garantido a toda e qualquer pessoa, é preciso reconhecer que aquelas que ocupam esses cargos detêm poderes e funções sensíveis para o Estado e a sociedade. O ingresso direto na disputa eleitoral, sem um afastamento temporário adequado, pode colocar em risco não só a lisura do processo, como também a confiança nas instituições brasileiras.
A experiência recente evidencia alguns riscos concretos. Casos como o de candidatos das forças de segurança fazendo uso da estrutura policial como “base” eleitoral ou utilizando viaturas e efetivo durante campanhas demonstram o problema. Situações assim representam não apenas uma sobreposição indevida entre atividade policial e política, mas também criam um potencial de desequilíbrio democrático, intimidação e uso irregular do aparato estatal a favor de projetos particulares.
A atual legislação, contudo, permite que, por exemplo, policiais militares se afastem para concorrer a cargos eletivos faltando apenas dois meses para o pleito — muitas vezes permanecendo em funções estratégicas até o início oficial da campanha. O curto período de desincompatibilização é insuficiente para garantir a independência necessária entre as esferas.
Como defendem diversas organizações da sociedade civil, “não há como assegurar, com tão pouco tempo, que as atividades de policial e da candidatura não se sobreponham.”
O projeto de novo Código Eleitoral aprovado na Câmara dos Deputados prevê uma quarentena de quatro anos para membros do Judiciário, do Ministério Público e das forças de segurança que desejam concorrer a cargos eletivos. Esta proposta — endossada por Conectas e por dezenas de organizações da sociedade civil — representa um passo fundamental para proteger a imparcialidade e a credibilidade das instituições. Atualmente, esse texto está sendo discutido no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, onde o último relatório apresentado pelo relator da matéria reduziu esse período para dois anos.
Como diz nota pública assinada pela Conectas e outras 26 entidades: “Protegemos não apenas as corporações da politização indevida, mas também fortalecemos a solidez e a imparcialidade das instituições democráticas. […] A medida é fundamental para assegurar que as forças de segurança continuem atuando como defensoras da ordem pública, da justiça e dos direitos humanos — não servindo como instrumentos a serviço de projetos políticos específicos”.
A quarentena eleitoral, especialmente para integrantes das forças de segurança, não deve ser considerada uma restrição de direitos, e sim uma salvaguarda da democracia. Ao garantir tempo adequado de afastamento, defendemos a pluralidade da política, a confiança nas instituições públicas e a integridade do próprio processo eleitoral. É assim que avançamos em direção a uma democracia mais justa, transparente e representativa.