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20/12/2022

Retrospectiva 2022: a defesa dos direitos humanos no ano mais importante desde a redemocratização

No ano em que a democracia sofreu seus maiores ataques, a sociedade civil precisou estar mais atenta do que nunca; leia os destaques



Marcado pelas eleições gerais, o ano de 2022 exigiu intensa atuação da sociedade civil em defesa do sistema eleitoral e na tentativa de barrar mais retrocessos no campo dos direitos humanos. Infundados ataques ao sistema eleitoral, declarações falsas ou distorcidas a fim de tumultuar o processo e constantes ameaças aos direitos humanos fizeram soar o alarme de preocupação das organizações da sociedade civil inúmeras vezes. A esse quadro se soma uma série de ataques a direitos garantidos pela Constituição, prática recorrente do governo de Jair Bolsonaro nesses últimos 4 anos. Entre os acontecimentos, há vitórias para quem defende os direitos humanos e os valores democráticos e desafios a serem superados no próximo ano. 

A seguir, a Conectas relembra os principais acontecimentos do ano:

Em defesa do sistema eleitoral 

Mesmo sem provas, Jair Bolsonaro começou a questionar a eficiência e transparência do sistema eleitoral em 2018, quando afirmou que deveria ter vencido as eleições no primeiro turno. Mas foi em 2022 que os ataques se intensificaram, quando, por diversas vezes, o então candidato à reeleição criou situações para tumultuar o processo de votação. Entre os maiores exemplos, está a reunião com embaixadores e representantes diplomáticos no Brasil para repetir, sem provas, e para o público internacional, mentiras sobre a segurança das urnas eletrônicas. 

Já em maio, a Rede Pacto Pela Democracia, coalizão composta por 200 organizações da sociedade civil incluindo a Conectas, publicou  um manifesto repudiando os ataques antidemocráticos. Em setembro, a Conectas e mais nove entidades brasileiras também denunciaram os ataques e a escalada da violência política ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra (Suíça). “A democracia e o sistema eleitoral estão sob grande ameaça no Brasil. Nós vivemos uma situação sem precedentes na democracia brasileira”, alertaram as organizações à comunidade internacional reunida na ONU.

A Vigília Cívica, composta por dezenas de entidades da sociedade civil, sediada na OAB São Paulo, acompanhou atentamente todo o processo eleitoral. Ao fim do resultado, em 31 de outubro, as organizações ressaltaram a importância de apurar as denúncias de abuso de poder político, incluindo a atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF), e celebraram a conclusão de mais uma eleição limpa e transparente. 

Ainda no contexto eleitoral, diversas instituições e entidades internacionais que acompanham as eleições brasileiras na condição de observadores atestaram a segurança e a eficiência das urnas eletrônicas, bem como a competência das autoridades eleitorais responsáveis pelo pleito.

Em julho, políticos norte-americanos receberam uma comitiva brasileira em Washington, formada por 19 organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, a fim de serem informados sobre os ataques ao sistema eleitoral e à democracia do Brasil. O grupo pediu que os parlamentares atuassem para que os EUA reconhecessem imediatamente o resultado da eleição presidencial de outubro. A intenção foi a de evitar a concretização das ameaças feitas pelo presidente Jair Bolsonaro contra o sistema eleitoral e à democracia brasileira.

Em setembro, parte da comitiva também visitou a Europa. Em encontros com membros da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu e na 51ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o grupo de brasileiros também pediu que a comunidade internacional reconhecesse os resultados das eleições de forma imediata.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu a vitória do presidente Lula pouco mais de meia hora depois do anúncio de finalização do TSE, assim como Antony Blinken, chefe da diplomacia americana. No Twitter, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, também parabenizaram o novo presidente na mesma noite. 

Pacote Verde e avanços na litigância climática

Em ato inédito, em março, o STF iniciou o julgamento de sete ações relacionadas à proteção ambiental e mudanças climáticas, agenda conhecida como “pacote verde”. “Temos percebido que o ‘esverdeamento’ dos direitos humanos tem estabelecido novas oportunidades para que retrocessos antes vistos setorialmente sejam integrados à uma agenda mais ampla de respeito à dignidade humana e enfrentamento ao racismo estrutural”, afirmou Julia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas. 

No mesmo dia do início do julgamento, cinco organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, protocolaram um relatório para o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos relatando sobre o status de não-cumprimento de compromissos sobre a redução do desmatamento da Amazônia. Entre as recomendações, o documento pede que não se “promova alterações legislativas que facilitem ou incentivem o desmatamento, sobretudo na Amazônia e Cerrado” e que não se diminua “os limites de territórios indígenas já demarcados”.

Em abril, um pedido de vista do ministro André Mendonça travou a análise de duas das sete ações do “pacote verde”, depois que a ministra Cármen Lúcia determinou, no âmbito da ADPF 760, que o governo federal retomasse o PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia). Com o pedido de vista, além da ADPF 760, a ADO 54, que acusa o governo federal de omissão no combate ao desmatamento e que estava sendo julgada em conjunto, também ficou congelada.

Ainda assim, outras medidas avançaram. Em julho, por 10 votos a 1, os ministros obrigaram o governo federal a manter os recursos para o funcionamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, o Fundo Clima, que existe desde 2009 e é um dos principais órgãos do país no enfrentamento à crise climática. Além disso, em outubro, o STF também formou maioria para obrigar o governo a reativar o Fundo Amazônia. 

Migração e refúgio

Após uma visita em Boa Vista e Pacaraima, em novembro de 2021 com a presença da Conectas, o CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos) publicou relatório, em março de 2022, com recomendações a órgãos responsáveis por acolher migrantes, especialmente venezuelanos na região. De um modo geral, as recomendações cobram das autoridades públicas medidas efetivas para garantir direitos das pessoas venezuelanas que cruzam a fronteira, olhando também para a especificidades destas populações, como é o caso dos povos indígenas migrantes. 

Em outra frente na defesa das pessoas migrantes e refugiadas, a Conectas e outras entidades encaminharam questionaram o MRE (Ministério das Relações Exteriores) sobre a suspensão de agendamento de vistos para pessoas afegãs que desejavam entrar no Brasil. As organizações denunciaram que obstáculos no processo de concessão do visto humanitário criado pelo governo brasileiro para refugiados afegãos estão inviabilizando a obtenção do documento por pessoas que fogem do país controlado pelo Talibã.

ADPF das Favelas vive

O STF (Supremo Tribunal Federal) aprovou, em fevereiro, uma proposta que obrigou a criação de um plano de redução da letalidade policial em operações nas favelas fluminenses. Os votos foram apresentados durante a retomada da análise de um recurso da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, conhecida como ADPF das Favelas. Na ocasião, os ministros também aprovaram a criação de um Observatório Judicial da Polícia Cidadã, a prioridade para a investigação de operações com mortes de crianças e adolescente, a obrigatoriedade de ambulâncias onde houver confronto armado e reconhecimento que só se justifica o uso da força letal por agentes de Estado em casos extremos, sempre priorizando a proteção da vida.

Um dos pontos de discordância, no entanto, foi referente à instalação de sistemas de gravação nas viaturas e nas fardas dos agentes. Em agosto, organizações de direitos humanos e movimentos de favela pediram que o STF determinasse ao Estado do Rio de Janeiro a implementação destes sistemas. Na avaliação do advogado Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, o uso da tecnologia para reduzir os abusos e a letalidade policial é bem-vindo, sendo que a medida já demonstrou impacto positivo, inclusive, na redução da morte de policiais.

Comunidades terapêuticas

Em março, a Conectas apresentou as falhas das chamadas comunidades terapêuticas (CT) – entidades privadas que oferecem tratamentos a pessoas com problemas de consumo de drogas –, na 49º sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra (Suíça). Organizações do tipo preocupam entidades de direitos humanos porque não há transparência sobre os trabalhos realizados, nem comprovação da eficácia da metodologia de tratamento, tampouco mecanismos transparentes de controle e avaliação. A manifestação da Conectas também lembrou que, enquanto investimentos em equipamentos de saúde e na rede de atendimento psicossocial (RAPS) vêm sendo reduzidos, o repasse de recursos a comunidades terapêuticas, que não pertencem ao sistema de saúde ou assistência social, tem aumentado.

“Pedimos ao governo do Brasil que adote uma abordagem de direitos humanos em sua definição de políticas sobre drogas. É urgente uma discussão aprofundada e democrática sobre o financiamento público das Comunidades e seu papel na política brasileira de atenção às pessoas com uso problemático de drogas”, disse Gustavo Huppes, assessor de advocacy internacional da Conectas, durante seu discurso no Conselho de Direitos Humanos.

Em abril, a Conectas e o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) lançaram um levantamento inédito, mostrando, entre outras coisas, que as CTs receberam, entre 2017 e 2020, o total de R$ 560 milhões do poder público, com tendência de alta para os próximos anos. 

Como lembrou a advogada Carolina Diniz, assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas e coordenadora do projeto que originou o relatório, os avanços dessas organizações são um retrocesso na política de saúde mental, na perspectiva antimanicomial. “O dinheiro público está sendo direcionado a instituições privadas, muitas de cunho religioso, sem controle estatal e social.”

Espionagem sob vigilância

O uso de ferramentas de espionagem ilegal, sobretudo contra movimentos sociais e sociedade civil organizada pelo governo federal, foi alvo de denúncias feitas pela Conectas e parceiros nos últimos anos. Diante dessa reação, uma cautelar do TCU de 2021, mantida em janeiro de 2022, proibiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública de adquirir o sistema de espionagem Harpia, capaz de monitorar e perfilar cidadãos sem qualquer justificativa prévia. Na ocasião, os ministros do TCU entenderam que, ainda que o contrato com a empresa tivesse sido concretizado, o governo federal deveria evitar “a assinatura de qualquer ordem de serviço ou a realização de qualquer pagamento, até que o Tribunal delibere sobre o mérito da matéria em apreço”. Contudo, em maio, o TCU derrubou a cautelar e autorizou a retomada do contrato entre a administração federal e a empresa de vigilantismo digital. 

Esse não foi o único caso de investimento em ferramentas tecnológicas de espionagem por parte do governo federal. Em fevereiro, quatro entidades da sociedade civil, incluindo a Conectas, protocolaram uma representação no MPF (Ministério Público Federal) pedindo a abertura de inquérito civil para investigar o uso da “Plataforma Integrada de Operações e Monitoramento de Segurança Pública”, conhecida como Córtex, por órgãos federais e de segurança pública.

“Identificamos que o Córtex tem potencial para ferir a liberdade de manifestação e expressão, violar a intimidade e outros direitos fundamentais da população brasileira”, afirma Raissa Belintani, coordenadora do programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas. “O cenário é especialmente grave neste governo que ataca os valores democráticos de forma recorrente”.

Em junho, Conectas, Data Privacy, Transparência Internacional, Artigo 19 e Fórum Brasileiro de Segurança Pública entraram com uma representação no Ministério Público Federal pedindo investigações sobre um projeto do governo federal de armazenamento e compartilhamento de dados de investigações policiais obtidos por meio do Projeto Excel – e que destrua as bases de dados que estão em seu poder. A denúncia das ONGs levou o MPF a propor, em dezembro,  uma ação civil pública para investigar o caso. 

Governança ambiental global e COP27 no Egito

Em 2022, em um cenário de intensificação da crise climática em razão de retrocessos na transição energética decorrentes da guerra na Ucrânia, o mundo presenciou duas importantes conferências voltadas à garantia dos direitos socioambientais. A conferência Estocolmo+50, realizada em junho, celebrou os 50 anos da governança ambiental global. A celebração fez um balanço do papel da conferência de 1972, quando, por exemplo, foi criado o Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). A liderança indígena Txai Suruí esteve no evento. Em entrevista para a Conectas, ela afirmou que os povos originários podem contribuir para o debate climático e ambiental a nível global. 

A ONU também realizou a  27ª Conferência do Clima da ONU, a COP27, no Egito. O evento chamou especial atenção para o Brasil por conta da presença do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Para a Conectas, a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, copresidente do Painel Internacional de Recursos, plataforma político-científica do Pnuma, declarou que a presença do Lula na COP coloca a conversa em outro patamar. “É importante o Brasil ver a Amazônia como catalisadora dos interesses nacionais e dessas trajetórias comuns de cooperação em relação à questão climática, não só de mitigação, mas de adaptação. Isso tem reflexo nas relações bilaterais, trilaterais e regionais”. 

Pelo fim da tortura

O desmonte do sistema de combate à tortura no Brasil foi denunciado pela Conectas e a Justiça Global no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em março. No discurso, as organizações pediram atenção em relação ao agravamento da situação dos direitos humanos no Brasil, e cobraram do governo brasileiro a promoção de políticas concretas de prevenção e combate à tortura. O mesmo pedido já havia sido feito em fevereiro, quando o SPT (Subcomitê de Prevenção à Tortura) realizou uma visita ao país, pedindo às autoridades que respeitassem os compromissos internacionais de direitos humanos. Foi a terceira vez em 10 anos que o SPT visitou o Brasil para avaliar a pauta do combate à tortura.

Ainda em março, por unanimidade, o STF suspendeu os efeitos do decreto 9.831/19, do presidente Jair Bolsonaro, que exonerou os 11 peritos do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), transformando suas atividades em trabalho não remunerado. Diversas entidades que atuam no enfrentamento à tortura no Brasil, incluindo a Conectas,  participam do julgamento como amici curiae.

Para criminalizar o ativismo

Uma série de projetos de lei para alterar e ampliar o escopo das ações antiterroristas no Brasil preocupou a sociedade civil no ano de 2022. Entre eles, os PLs 732/2022, 733/2022, 1595/2019 e 272/2016. Durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra (Suíça), em março, a Conectas Direitos Humanos e a Artigo 19 denunciaram os PL’s (Projetos de Lei) 1595/2019 e 272/2016, com propostas que visam alterar e ampliar o escopo das ações antiterroristas no Brasil. No discurso, as organizações pediram que o Conselho questionasse o Estado brasileiro acerca das obrigações e compromissos internacionais assumidos pelo país. 

Em visita ao Brasil, em março, o relator especial das Nações Unidas sobre os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação, Clément Voule, manifestou preocupação com os mesmos projetos. De acordo com suas observações, estas propostas “têm avançado no processo legislativo e baseiam-se em definições amplas de terrorismo fazendo da legislação um instrumento fácil para criminalizar o ativismo”.

Os abusos da Justiça Militar

Em março, a situação da Justiça Militar foi tema de uma audiência pública na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), órgão ligado à OEA (Organização dos Estados Americanos). A audiência foi solicitada pela Conectas, Justiça Global, IBAHRI (Instituto de Direitos Humanos, da International Bar Association), Terra de Direitos e IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).

De acordo com especialistas em segurança pública e no enfrentamento à violência institucional, os problemas da Justiça Militar estão relacionados ao fato de que esses tribunais extrapolam suas competências constitucionais e os parâmetros internacionais, atuando para além da atividade estritamente militar.

Em outubro, a Conectas e a FGV Diversidade lançaram uma Nota Técnica sobre a Justiça Militar, reforçando a necessidade de investigação, sistematização e exposição do sistema de Justiça Militar brasileiro. Ao fazer uma análise histórica, técnica e prática da Justiça Militar, a Conectas e a FGV Diversidade chamaram atenção para os casos de abuso e destacam a importância da vigilância da sociedade civil para a responsabilização daqueles que possuem treinamento e legitimidade para o uso do poder da força em nome do Estado.

De olho na OCDE 

Ao longo do ano, a Conectas, a OECD Watch e a FIDH (Federação Internacional de Direitos Humanos) lançaram uma série de relatórios (disponíveis em inglês e em português) que mostra como o Brasil está deficitário em temas como o combate às mudanças climáticas e o desmatamento; a proteção ambiental, dos povos indígenas e de defensores; e direitos trabalhistas. Segundo as organizações, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) não deveria aprovar a adesão do Brasil até que o país apresente mudanças legislativas, políticas e boas práticas de proteção ambiental e de direitos humanos alinhadas aos padrões e valores da organização. 

Em outubro, as ONGs ainda enviaram uma carta à OCDE solicitando que a entidade cobre do Brasil altos padrões para a proteção  do meio ambiente, do clima e dos povos indígenas. “Como vimos nos últimos anos e explicamos em nossa carta, o governo do presidente Jair Bolsonaro tem níveis recorde de desmatamento e aumentado as violações dos direitos humanos em nome da expansão da fronteira agrícola”, afirma o documento. “Exortamos a OCDE a exigir que, para obter a adesão, o Brasil terá que completar reformas significativas nas políticas nessas áreas e demonstrar avanços, como uma pré-condição para aderir à OCDE.” O país segue no processo de adesão à organização. 

Desinformação livre

Durante o processo eleitoral, não foi raro ouvir pessoas repetindo mentiras sobre o funcionamento das urnas eletrônicas e fazendo incitação contra a ordem democrática. De acordo com um levantamento da plataforma jornalística “Aos Fatos”, só o presidente Jair Bolsonaro fez 5.588 declarações falsas ou distorcidas durante 1.270 dias como presidente.

Em junho, a Conectas e a Artigo 19 denunciaram a desinformação promovida por autoridades públicas no Conselho de Direitos Humanos da ONU. “Entre as diferentes ondas de informações enganosas que vemos no Brasil está o questionamento da integridade do sistema eleitoral brasileiro, inclusive por parte de autoridades públicas, entre elas o próprio presidente Jair Bolsonaro”, destacaram as organizações. “Colocar em dúvida o sistema eleitoral é atentar contra seu funcionamento e contra o Estado Democrático, além de encorajar perigosamente ações contra suas instituições”.

A responsabilidade também foi cobrada das grandes empresas de tecnologia. Em julho, um conjunto 115 organizações da sociedade civil e pesquisadores acadêmicos lançaram um documento pedindo medidas mais efetivas das plataformas de mídia digital durante o período de eleição. Depois do segundo turno, com o aumento dos chamados à sublevação e pedidos de intervenção militar, a cobrança se manteve. “Esta transparência é essencial para que a sociedade e autoridades identifiquem o que está sendo feito neste momento perigoso de levante contra a ordem democrática”, afirmaram as entidades em uma nota dirigida às empresas. 

Agenda para os 100 primeiros dias de governo

A Rede Justiça Criminal, coletivo e organizações da sociedade civil a qual a Conectas faz parte, lançou em setembro sua agenda de propostas para as eleições de 2022. O documento ‘É por Justiça’ apresenta cinco temas urgentes para serem trabalhados nos primeiros 100 dias de governo, relacionados à justiça criminal e segurança pública. A agenda denuncia que a política criminal adotada no país tem gerado ainda mais criminalidade, colocando o Brasil no primeiro lugar do ranking de países com maior número absoluto de homicídios do planeta e de oitavo país mais violento do mundo, de acordo com ranking da UNODC, o escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Os pontos da agenda são: sistema prisional e justiça criminal, política de drogas, prevenção e combate à tortura, controle de armas e letalidade policial. 

Bruno Pereira e Dom Phillips vivem

As mortes do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips chocaram o mundo em junho. Os dois foram assassinados durante uma expedição à região amazônica do Vale do Javari, palco de conflitos como tráfico de drogas, roubo de madeira e avanço do garimpo. No mesmo mês, a Conectas e a Comissão Arns denunciaram, na ONU, a demora nas investigações sobre o caso.

“Os assassinatos de Bruno e Dom demonstram os crescentes riscos enfrentados por aqueles que se atrevem a defender o meio ambiente no Brasil e as comunidades indígenas, que enfrentam um revés histórico sob o governo do presidente Jair Bolsonaro”, destacaram as organizações no discurso.

Apesar dos apelos e da prisão de alguns suspeitos, o caso segue sem uma definição. “Já são 5 meses desde a morte de Bruno e Dom. A morosidade dos órgãos responsáveis para solucionar é alta! Nos parece que as investigações estão sendo feitas de forma paliativa ou que estão simplesmente paradas”, informou a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), em uma nota, emitida em dezembro. 

A sociedade cobra o BNDES por mais compromisso climático 

Em junho, a Conectas protocolou na Justiça Federal de Brasília (DF) um litígio climático inédito no mundo. Pela primeira vez, uma organização não governamental cobrou de um banco de desenvolvimento, o BNDESPar — a subsidiária do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) responsável por administrar as participações acionárias em empresas detidas pelo banco — a publicação de um plano de redução de emissões de gases do efeito estufa que oriente seus investimentos segundo as metas do Acordo de Paris e da PNMC (Política Nacional sobre Mudanças do Clima). 

“O BNDESPar mantém participações acionárias expressivas nos setores de petróleo e gás, produção de carne, mineração e energia elétrica, e, até recentemente, mineração. Todos eles são setores com forte impacto social e ambiental e em emissões de gases do efeito estufa”, afirmou Júlia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas. “O que queremos é que o portfólio de investimentos do banco se alinhe ao Acordo de Paris e que passe a contribuir com a redução das emissões segundo a Política Nacional de Mudanças Climáticas.”

Eleições sem armas

Episódios de violência política envolvendo armas de fogo — como a morte do guarda municipal petista Marcelo Arruda, por um bolsonarista — reacenderam o debate sobre o armamento no Brasil. Em setembro, por nove votos a dois, o STF suspendeu trechos de decretos federais de 2019 que alteram o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) para flexibilizar o porte de armas. A decisão da Corte foi tomada no âmbito da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 6139 e acompanhou a liminar proferida pelo ministro-relator Edson Fachin. Apenas os ministros André Mendonça e Nunes Marques divergiram do relator.

Ainda em setembro, por unanimidade, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) aprovou uma resolução proibindo o transporte de armas e munições, em todo o território nacional, por parte de CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), tanto no dia das eleições quanto nas 24 horas que antecedem e sucedem o pleito.

Em manifestação no caso, a Conectas e outras nove organizações da sociedade civil demonstraram preocupação em relação aos CACs porque “o crescimento dos registros nesta categoria não foi acompanhado do desenvolvimento de mecanismos de controle e fiscalização que reduzissem o potencial impacto na ordem e segurança públicas de centenas de milhares de pessoas transitando armadas pelo país”. 

A decisão do TSE, no entanto, não impediu a ocorrência de episódios violentos, como a perseguição de um homem negro por uma deputada bolsonarista armada, Carla Zambelli, um dia antes da votação do segundo turno. 

Crimes de Maio o ano todo

Dezesseis anos depois dos Crimes de Maio, o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) decidiu federalizar a investigação de uma  chacina ocorrida no contexto desses crimes em 2006, que permanece impune até hoje. O pedido de federalização foi demandado à PGR (Procuradoria-Geral da República) por familiares das vítimas e pela Conectas, parte interessada na ação judicial, em 2009. O pedido foi apresentado pela PGR apenas em 2016, e só em agosto de 2022 foi aceito pelo STJ. Com a medida, o tribunal reconhece as falhas dos órgãos estaduais na condução do caso. 

Na ocasião do crime, grupos de extermínio deixaram mais de 500 mortos e 110 feridos — na maioria, moradores da periferia de São Paulo, muitos dos quais sem ligação com crimes —, como resposta a uma série de rebeliões e ataques a agentes públicos, promovidos por uma facção criminosa. O caso foi um dos exemplos levados pela Conectas à ONU, em setembro, quando exigiu do Brasil medidas concretas contra a prática de desaparecimento forçado, durante a 51ª sessão do Conselho de Direitos Humanos. A organização afirmou que “a complacência do mais alto nível da polícia contribui para a falta de responsabilização do Estado”, lembrando que estes desaparecimentos afetam, sobretudo, pessoas negras.

A denúncia feita pela Defensoria Pública de São Paulo, Conectas e Movimento Mães de Maio na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos),  da OEA (Organização dos Estados Americanos), para investigar casos de desaparecimentos forçados ocorridos nos Crimes de Maio passou para a etapa de admissão. Há três casos na comissão sobre os Crimes de Maio. 

Também em 2022, a Conectas elaborou,  junto com as Mães de Maio, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo e a  Universidade de Harvard  lançaram nota técnica para orientar a implementação de núcleos especializados de atendimento Integral para vítimas de violência estatal.

RPU e CERD: prestando contas

Em novembro de 2022, o Brasil passou por sua quarta Revisão Periódica Universal (RPU), espécie de prestação de contas na área dos direitos humanos à qual os Estados-membros da ONU são submetidos a cada quatro anos, aproximadamente. Na ocasião, são analisados os problemas apontados pela sociedade civil; o que o país diz sobre si mesmo; e o compilado de relatórios de agências da ONU sobre os direitos humanos no país.

Em 2022, a Conectas enviou contribuições à ONU em doze áreas diferentes: a defesa da sociedade civil; migração e refúgio; questões de gênero e igualdade; desmatamento, meio ambiente e povos indígenas; combate ao trabalho escravo; ações afirmativas raciais; mineração e atingidos; combate à tortura; justiça militar; letalidade policial; direito ao voto e população em situação de rua. 

Durante a revisão, que aconteceu em Genebra (Suíça), o respeito aos direitos indígenas, em especial a necessidade de reconhecimento e demarcação de seus territórios, bem como a proteção dos defensores de direitos humanos e ambientais, foram algumas das recomendações mais repetidas pelos Estados-membros. Além disso, diferente dos outros anos, em que a segurança pública ganhou destaque, desta vez o combate ao racismo e à violência contra a população negra ganharam mais evidência. 

Em um artigo no site da ONU, a coordenadora residente da ONU no Brasil, Sílvia Rucks, e o representante para o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) na América do Sul, Jan Jarab, lembraram que “as recomendações do quarto ciclo da RPU são uma oportunidade para o Brasil fortalecer o trabalho em direitos humanos e devem ser apropriadas pelos três poderes do Estado brasileiro, orientando inclusive as ações da nova administração”.

No mesmo período, o Brasil passou pela análise do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, da ONU. De acordo com o órgão, as políticas públicas de combate às desigualdades raciais adotadas pelo Brasil nas duas últimas décadas —principalmente a partir de demandas de movimentos sociais e organizações da sociedade civil— ainda não foram suficientes para superar o racismo estrutural e institucional no país, sendo que o desmonte dessas políticas pela gestão federal que se encerra agora dificultou ainda mais sua implementação, consolidação e ampliação.

A avaliação é do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas. Com sede em Genebra (Suíça), o órgão analisou entre novembro e dezembro deste ano as ações promovidas desde 2004 pelo Brasil para tornar efetivas as disposições de combate ao racismo previstas na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965.

Povos indígenas e tradicionais na linha de frente

O governo Bolsonaro e o Congresso Nacional, em múltiplas tentativas de enfraquecer a legislação e a proteção dos povos originários, demonstraram a falta de compromisso com a defesa dos direitos dos povos indígenas e tradicionais do Brasil. Ao longo de 2022, diversas denúncias deflagradas no sistema internacional de direitos humanos deixaram isso evidente. Durante o ano, organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, denunciaram em diferentes fóruns internacionais a situação dos povos originários no Brasil, como em março, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, quando a Conectas demonstrou os ricos do PL 191/2020, que buscava permitir a mineração – inclusive por meio de garimpos –, a geração de energia elétrica e a exploração e produção de petróleo e gás natural em terras indígenas. Em setembro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU recebeu mais duas denúncias de indígenas brasileiras contra crimes ambientais e de direitos humanos  que estão ocorrendo na Amazônia brasileira. 

Os povos quilombolas também integraram as lutas socioambientais em resposta ao desmonte de políticas públicas da gestão federal. Durante a pandemia de Covid-19, comunidades quilombolas tiveram que ir à justiça para conseguir proteção. Durante esse processo, conseguiram levantar os primeiros números referentes às comunidades, com o apoio de parceiros. “Essas parcerias são essenciais para fomentar, fortalecer, auxiliar e dar apoio nesse processo da visibilidade da importância dos quilombos”, acredita o antropólogo e quilombola pernambucano Antônio Crioulo, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.

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