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20/04/2022

Saiba como funciona a Revisão Periódica Universal da ONU e qual sua importância para os direitos humanos

Em parceria com outras organizações, Conectas elabora relatórios com recomendações para o Brasil no processo de avaliação promovido pela ONU

Revisão acontece no âmbito do Conselho de Direitos Humanos, da ONU
(Foto: Jean-Marc Ferré/UN Photo) Revisão acontece no âmbito do Conselho de Direitos Humanos, da ONU (Foto: Jean-Marc Ferré/UN Photo)

A cada quatro anos e meio, aproximadamente, todos os 193 Estados-membros das Nações Unidas são sabatinados sobre as medidas adotadas para o enfrentamento das violações de direitos humanos em seus países. Trata-se da RPU (Revisão Periódica Universal), que acontece no Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra, na Suíça. É uma espécie de prestação de contas na área dos direitos humanos. 

Em novembro de 2022, o Brasil passa por sua quarta revisão desde que a RPU foi criada, em 2006. Nessa ocasião, os outros Estados-membros fazem recomendações ao país tendo como base três documentos: o que o Brasil diz sobre si mesmo; os problemas apontados pela sociedade civil; e o compilado de relatórios de agências da ONU sobre os direitos humanos no Brasil. 

Como funciona o processo da RPU

No seu primeiro relatório, o governo do país deve exibir pontos como o andamento de adesões às normas internacionais, o desenvolvimento de métodos para acompanhar os avanços na área, e uma avaliação sobre os novos desafios, bem como a evolução das recomendações feitas na última revisão. Ao mesmo tempo, a sociedade civil e a ONU também elaboram relatórios a serem comparados com a versão oficial dos fatos. Os três documentos são encaminhados aos Estados-membros, a fim de elaborarem suas recomendações para o dia da revisão. O governo sabatinado pode, então, aceitar ou recusar essas novas recomendações. 

O sistema tem por objetivo a estratégia conhecida como “naming and shaming”, que não envolve sanções, mas, sim, o constrangimento do país ao ver suas violações persistentes sendo expostas, fazendo com que o Estado se preocupe com sua reputação internacional, e o consequente impacto para os negócios. 

Os efeitos da última RPU

Em 2017, quando o Brasil passou por sua terceira revisão, o país recebeu 246 recomendações, das quais aceitou 242 de forma voluntária. Entre a revisão de 2012 e a de 2017, observou-se um aumento nos casos de homicídio, de violência policial e no número de pessoas encarceradas. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, na época, a população carcerária era de 654 mil. Em 2018, o número já havia superado os 800 mil. Hoje, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), com dados até julho de 2021, o número é de 820.689. 

Em 2017, o tópico mais preocupante, no entanto, foi o das políticas públicas voltadas para povos indígenas — uma situação que só se agravou desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, que assumiu o cargo, em 2019, afirmando que o Brasil não teria “um centímetro quadrado [de terras] demarcadas”. 

Para 2022, a Conectas enviou contribuições à ONU em diferentes áreas. Separamos aqui um resumo dos relatórios elaborados pela organização em parceria com outras entidades comprometidas com a defesa dos direitos humanos no país. 

  1. Ações afirmativas raciais

Ao lado da Coalizão Negra por Direitos, a Conectas examinou o cumprimento de algumas das principais obrigações internacionais de direitos humanos do Estado brasileiro, relacionadas à criação e manutenção de ações afirmativas para a população negra do país. As instituições também recomendaram ações como o estímulo de mais ações afirmativas raciais no setor privado; o aprimoramento dos mecanismos de monitoramento e avaliação das políticas afirmativas raciais; e a rejeição de propostas legislativas que visem revogar ou enfraquecer a lei de Cotas Raciais. 

  1. Defesa da sociedade civil

No relatório elaborado pela Conectas com a Artigo 19, analisou-se o cumprimento das obrigações internacionais de direitos humanos pelo governo brasileiro, a fim de criar e manter um ambiente seguro e propício para a sociedade civil. Em especial, foi analisado o cumprimento dos direitos à liberdade de associação, reunião e expressão e restrições injustificadas aos defensores de direitos humanos. Entre as ações sugeridas, estão rejeitar propostas que visem aumentar a legislação “antiterrorismo” — que servem como pretexto para a intensificação de mecanismos de vigilância e a criminalização de movimentos sociais; e garantir a participação social no PNDH (Programa Nacional de Direitos Humanos).  

  1. Migração e refúgio

Desde 18 de março de 2020, o governo brasileiro publicou uma sequência de 37 portarias que impõem restrições à entrada no país, sob o pretexto de conter a disseminação da covid-19. As medidas demonstram diferença de tratamento em relação aos países de origem e meios de transporte, violando os direitos de igualdade e não discriminação. Além disso, essas normas administrativas são ilegais, inconstitucionais e desrespeitam a legislação nacional, bem como os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. No relatório, entidades brasileiras da RAC pedem que seja feito um monitoramento do sistema de acolhimento de migrantes e refugiados, através de um processo transparente, sobretudo dos venezuelanos, que fazem parte do grupo mais vulnerabilizado. Pede-se ainda que se inclua ações específicas para migrantes indígenas na Política Nacional de Migração, Refúgio e Apatridia.

Entre as instituições que assinam o relatório estão Cáritas, Centro de Atendimento ao Migrante, Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante, Defensoria Pública da União, Instituto Migrações e Direitos Humanos, Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional (Migraidh), Missão Paz e Conectas. 

  1. Gênero: Igualdade e não discriminação, políticas de gênero e direitos sexuais e reprodutivos no Brasil

Em relação às questões de gênero, o relatório elaborado em parceria com a Sexuality Policy Watch (SPW), Católicas pelo Direito de Decidir, NUH/UFMG, Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) analisa o cumprimento das obrigações do governo de garantir dignidade e os direitos de todos os seres humanos sem discriminação de qualquer espécie. Entre as ações recomendadas, estão o fortalecimento de mecanismos de denúncia de violações dos direitos da população LGBTI; e a criação de políticas de inclusão da sexualidade e diversidade de gênero na educação.

  1. Mineração e atingidos 

Em 2015, o rompimento da barragem de Fundão, controlada pela Vale e a Samarco, em Minas Gerais, deixou um rastro de lama, morte e destruição, tornando-se o maior desastre socioambiental do Brasil no setor da mineração. De acordo com  relatório de organizações da sociedade civil encaminhado à ONU, o governo brasileiro não tomou as medidas necessárias para reparar os danos causados, principalmente quando se trata de ações que evitem novos desastres do tipo. A ausência de responsabilização, além de comprometer o direito à reparação integral, torna-se mais uma violação dos direitos das vítimas e familiares e, em última instância, da própria sociedade. Entre as recomendações, estão a garantia de direitos fundamentais como os direitos humanos à vida, à saúde, à água potável, à alimentação, à moradia adequada e ao meio ambiente saudável, bem como o cumprimento das obrigações das empresas sob os instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos. 

Além da Conectas, também participaram da elaboração do relatório a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão; Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão; Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais; Movimento pelas Serras e Águas de Minas; e Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário. 

  1. Desmatamento, meio ambiente e povos indígenas

O Brasil não empreendeu esforços suficientes para implementar a Política Nacional sobre Mudança do Clima no que diz respeito à redução do desmatamento na região amazônica, nem adotou ações suficientes para a proteção de Terras Indígenas (pelo contrário, houve drástica redução da atuação estatal no bioma). É o que afirma o documento elaborado pela Conectas, em parceria com o ISA (Instituto Socioambiental), Laboratório do Observatório do Clima, Apib e WWF-Brasil. Entre as diversas ações recomendadas pelo documento, pede-se, entre outras coisas, que se proíba qualquer desmatamento na Amazônia por no mínimo cinco anos, com exceções para ações de subsistência e de populações tradicionais, e o retorno imediato das ações de repressão ao desmatamento ilegal.

  1. Combate ao trabalho escravo

Os mecanismos de combate ao trabalho escravo no Brasil tornaram o país uma referência em políticas públicas do tipo, tendo contribuído para o resgate de mais de 57 mil pessoas entre 1995 e 2021. Mas, uma série de ameaças e contratempos colocam em risco o trabalho desenvolvido nas últimas décadas. O relatório elaborado pela Conectas, em parceria com a Adere/MG (Articulação dos Empregados Rurais de Minas Gerais), Business & Human Rights Resource Centre e Oxfam Brasil indica que o governo tem usado a justificativa da crise econômica para flexibilizar direitos e deixar de investir em políticas sociais. De acordo com o documento, em um cenário de crise agravada pela pandemia, o Brasil precisa agir para evitar que novas pessoas sejam aliciadas e vítimas desse crime e resgatar aqueles que já estão em situação de violação de seus direitos humanos.

  1. Combate à tortura 

Apesar das  recomendações  recebidas de órgãos internacional, o Brasil ainda não conseguiu erradicar a tortura no país. O relatório elaborado pela Conectas, Agenda Nacional pelo Desencarceramento, Justiça Global, Pastoral Carcerária Nacional e World Organization Against Torture resgata documentos anteriores com estas recomendações que visam dar fim na tortura no Brasil e apresenta novas propostas como a construção de um banco de dados com todas as denúncias de tortura decorrentes de audiências de custódia e a proibição do uso de armas letais dentro das unidades prisionais.

  1. Justiça Militar

Após a ditadura militar, as competências da Justiça Militar e a definição legal do que é considerado crime militar foram ampliadas no Brasil. Por isso, o documento elaborado pela Conectas, IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Geni/UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos), Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Instituto de Defesa da População Negra e Justiça Global insta por medidas efetivas do governo brasileiro para estabelecer as competências constitucionais nos tribunais geridos pelas Forças Armadas. De acordo com as organizações, a Justiça Militar não deve, por exemplo, julgar civis e nem agentes que cometem crimes contra pessoas não-militares. 

  1. Letalidade policial 

Em 2020, a ADPF das Favelas, no STF (Supremo Tribunal Federal), intimou o governo do Rio de Janeiro a explicar o aumento da letalidade policial no estado. Mas, a violência policial não é uma exclusividade fluminense, e sim um problema nacional. Em busca de ações concretas que reduzam a letalidade policial, o relatório da sociedade civil à ONU afirmam que uma série de medidas podem salvar vidas: a suspensão do uso de helicópteros pelas forças de segurança pública como plataformas de tiro e instrumentos de terror; suspensão do sigilo sobre todos os protocolos de ação policial; e controle externo da polícia com possibilidade de ampla participação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil. O documento é assinado por Conectas, Geni/UFF, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Instituto de Defesa da População Negra e Justiça Global. 

  1. Direito ao voto 

O direito ao voto no Brasil passou por mudanças ao decorrer da história. Após a promulgação da Constituição de 1988, apenas os votos de maiores de 16 anos e menores de 18, analfabetos ou maiores de 70 anos são facultativos. Por outro lado, há um grupo específico que possui seus direitos suspensos: a população carcerária. As pessoas privadas de liberdade são impedidas de votar, isso significa que mais de 820 mil pessoas não possuem seus direitos políticos garantidos. Em documento enviado ao processo da RPU,  Conectas e  Instituto Pro Bono recomendam ao Brasil a adoção de medidas eficazes para assegurar o pleno exercício da cidadania às pessoas que se encontrem em situação de prisão, incluindo o direito de voto.

  1. População em situação de rua

O crescente número de pessoas em situação de rua no país é o foco deste relatório. Para as entidades signatárias, este cenário viola diversos direitos internacionais, especialmente aqueles relacionados ao combate à pobreza, à promoção da igualdade social, ao direito à boa saúde e à alimentação adequada. O documento salienta que esta situação tornou-se ainda mais grave por conta da pandemia de covid-19. O texto também aborda os problemas da remoção de pessoas em situação de rua e seus pertences por agentes estatais. Este relatório é assinado por Conectas e Instituto Nacional de Direitos Humanos da População em situação de rua, representado pelas Defensorias Públicas do Estado de São Paulo e do Paraná. 

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