Em março, a freira Ana Maria da Silva, de 60 anos, foi levada a prestar depoimento na delegacia, depois que equipes da Polícia Federal, Militar e Civil fizeram uma operação em uma casa de acolhida de refugiados que ela ajudava a supervisionar, em Pacaraima, Roraima. A casa, gerida pela Pastoral do Migrante, acolhia cerca de 55 mulheres e crianças venezuelanas. A ideia era que essas famílias fossem deportadas, mas acabaram sendo levadas à Operação Acolhida.
“Eu me senti como se fosse a maior traficante de drogas do mundo”, disse à Folha de S. Paulo a irmã Ana Maria. “Eles entraram aqui sem ordem judicial e me levaram para a delegacia de camburão. Qual é o meu crime, abrigar grávidas e crianças que estariam na rua?”
Segundo a DPU (Defensoria Pública da União) e o MPF (Ministério Público Federal), que entraram com uma ação na justiça para impedir a deportação pela União, os agentes não tinham mandados, e ingressaram no local com armas e capuzes.
A batida policial em Pacaraima está longe de ser a única ameaça aos migrantes e refugiados que buscam acolhida no Brasil. Segundo Camila Asano, diretora de programas da Conectas, muitos daqueles que já estão regularizados enfrentam dificuldades econômicas, uma vez que se encontram em situação de vulnerabilidade, lembrando que o acesso ao auxílio emergencial, a que muitos têm direito, foi interrompido ou voltou com um valor irrisório. Além disso, muitos dos que chegam com formação acadêmica não conseguem exercer sua profissão, por conta da cobrança de revalidação de diploma.
Situação pior podem enfrentar os refugiados e migrantes que chegaram depois de março de 2020, quando foi decretada a pandemia. A portaria interministerial 652, que entrou em vigor em 25 de janeiro de 2021, por exemplo, tem barrado a entrada por terra de qualquer pessoa proveniente da Venezuela, mesmo que, desde o meio do ano passado, turistas de qualquer nacionalidade possam entrar no Brasil. Questionado pela Conectas, o Governo informou que esta seria uma determinação sanitária da Anvisa. A agência sanitária, no entanto, negou qualquer orientação do tipo.
O juiz federal Felipe Bouzada Flores Viana, que julgou a ação da casa de acolhida de Pacaraima, movida pela DPU e o MPF, considerou a portaria ilegal e a ação da PF “grotesca”. No despacho, ele classificou o episódio como uma ilegal oficialização de uma política discriminatória em relação aos migrantes venezuelanos.
De acordo com a diretora Camila Asano, desde o início da pandemia, o Brasil decidiu adotar portarias de fechamento de fronteira, que já tinham em sua origem um caráter discriminatório contra venezuelanos. “No meio de 2020, por exemplo, as fronteiras aéreas foram reabertas, mas as terrestres continuaram fechadas, o que é um problema porque a maioria das pessoas que entram no país por meio terrestre está em extrema vulnerabilidade, precisando de proteção internacional, o que revela o caráter seletivo da medida.”
A diretora lembra que portarias como a 652 contrariam medidas como a Lei do Refúgio, que impede a deportação ou repatriação automática de quem tenha entrado no país em busca de refúgio; e a Lei da Migração, que prevê a garantia de direito de defesa e ao contraditório em processo de deportação.
“A consequência é que as pessoas vão continuar entrando, mas vão ficar irregulares, porque não conseguem tirar os documentos necessários”, explica Asano, lembrando que a Conectas continua atenta à situação, atuando no âmbito judiciário, e denunciando irregularidades junto à imprensa, e aos mecanismos internacionais e regionais de direitos humanos. “Na pandemia, isso é muito grave, porque, se forem infectadas, essas pessoas indocumentadas vão evitar procurar os serviços de saúde, por medo de serem capturadas. Assim, elas vão ficando cada vez mais à margem da sociedade.”