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Relatório analisa políticas antigênero e o avanço das pautas conservadoras no Brasil

Documento propõe respostas às ofensivas a partir da lei internacional de direitos humanos

A ministra Damares Alves (Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) faz esforços contra à perspectiva de gênero desde o início de sua gestão.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil A ministra Damares Alves (Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) faz esforços contra à perspectiva de gênero desde o início de sua gestão. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em uma audiência na Câmara dos Deputados, em 2019, o então ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, comparou os direitos reprodutivos da mulher a uma lâmina afiada. “Você tem um bolo e dentro desse bolo tem uma gilete. Eu quero abrir esse bolo e tirar a gilete. O que é o bolo? A saúde da mulher, os direitos da mulher. Agora, tem uma gilete lá dentro, que é o aborto, que tem de ser discutida em outra discussão, de acordo com a legislação nacional, que pune o aborto”, declarou.

O exemplo foi lembrado por Gustavo Huppes, assessor de advocacy internacional da Conectas, em outubro, durante o evento online de lançamento do relatório “Ofensivas antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social”, como um dos inúmeros ataques à perspectiva de gênero. E é exatamente estes ataques que o recém-lançado documento analisa.

“Ofensivas antigênero no Brasil” foi criado por organizações parceiras como Conectas, Observatório de Políticas de Sexualidade, Ação Educativa, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Conselho Latino Americano dos Direitos da Mulher, Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da Universidade Federal de Minas Gerais e IPAS.

Elaborado originalmente em inglês, o relatório foi desenvolvido em resposta a um apelo feito por Victor Madrigal, especialista independente da ONU para Orientação Sexual, Identidade de Gênero e Direitos Humanos, para que organizações da sociedade civil contribuíssem com a criação de um informe sobre o tema. O documento, que é lançado pela primeira vez em português, se esforça para, não só identificar, mas também oferecer respostas às ofensivas a partir da lei internacional de direitos humanos. Como apontou Paulo Mariante, da ABGLT, no lançamento, trata-se de um “instrumento muito importante para orientar nossas ações a partir de uma série de percepções”.

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Para Huppes, da Conectas, que recordou de ofensivas antigênero na área da política externa, o alinhamento entre o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos forma um casamento preocupante. “Após a queda do Ernesto Araújo e a baixada de tom do Carlos França [seu substituto], vemos o Ministério, principalmente na figura de Angela Gandra [Secretária da Família], encampando uma paradiplomacia da defesa dessa agenda conservadora, e tentando trazer uma liderança para o Brasil nesse campo”, observou.

Os esforços da pasta federal liderada pela ministra Damares Alves ficam evidentes em casos como o da menina de onze anos, de São Mateus, no Espírito Santo, que engravidou depois de ser abusada sistematicamente por um familiar. O relatório lembra que, embora, de acordo com a lei vigente, ela tivesse o direito de interromper a gravidez, grupos religiosos contrários aos direitos sexuais e reprodutivos e outros atores criaram obstáculos quase intransponíveis para impedir o procedimento, contando ainda com intervenção direta de funcionários de alto nível do ministério.

A advogada Beatriz Galli, da IPAS/CLADEM, lembrou de outros retrocessos em relação à saúde reprodutiva, como as barreiras sistêmicas e persistentes que inibem o acesso aos serviços de aborto legal; os ataques ao uso da telemedicina; e a redução expressiva no número desses serviços, sendo que apenas 55% dos hospitais que ofereciam serviço de aborto legal em 2019 continuavam funcionando em 2020. No âmbito legislativo, Galli rememorou a existência de 72 projetos de lei que visam restringir o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos no geral.

Atmosfera antigênero

De acordo com o professor Marco Aurélio Prado, da UFMG, para essa “organização ultraconservadora tudo o que é considerado uma política de estado é, normalmente, visto como uma obrigatoriedade, que limita a ação do governo”. Segundo essa ideia, seria preciso então ressignificar e destruir as bases antigas para a construção de um marco zero, “uma nova sociedade de valores conservadores”. “Um bom exemplo são os conselhos, que são políticas de estado, e que foram esvaziados, transformados, ocupados e destruídos pela política de governo. Ou seja, seguindo essa ideia de reconstruir a partir de um marco zero, que é obviamente o marco da exclusão da diversidade de gênero e da sexualidade”, define.

Na educação, essas ofensivas se mostram evidentes, com mais de 100 projetos de lei que proíbem explicitamente a abordagem de questões de gênero, como lembrou Denise Carreira, da Ação Educativa. A militarização, a autocensura nas escolas e as novas diretrizes do Programa Nacional do Livro Didático são outros exemplos. “Importante lembrar que o movimento ultraconservador tem uma dimensão de incidência política, uma dimensão muito forte de aparelhamento do Estado, e uma terceira dimensão, que é como um movimento cultural que perpassa o cotidiano, com base nas fake news, na desinformação e no estímulo do pânico moral, gerando toda essa atmosfera antigênero, antirraça e anti abordagem da agenda da sexualidade”, apontou Carreira.

Legado dos direitos humanos

Bruna Benevides, da Antra, a agenda que desumaniza pessoas trans é central nesse processo. Não à toa, o Brasil segue sendo o país que mais mata essas pessoas no mundo. “A ditadura não foi apenas civico-militar e midiática, mas também foi em defesa da normatividade de gênero e da sexualidade heterossexual e cisgênera. Isso demonstra que o que estamos vendo nesse cenário atual — de um governo militarizado, bolsonarista, que enaltece a tortura, mas, sobretudo, a ditadura — tem esse link com as políticas antigênero de outrora, que ganham forma e voltam a ser disseminadas publicamente, e aceitas por esses grupos que se organizam para barrar os direitos das pessoas que antes eram completamente invisibiliadas, a ponto de serem desumanizadas”, declarou.

Lembrando ainda que as mulheres trans e travestis são parte da população-chave para a elaboração de uma resposta eficiente à epidemia de HIV/AIDS no Brasil, Sônia Corrêa, pesquisadora associada da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, apontou a importância de incluir a questão do HIV em uma nova versão do relatório, que pretende ser um documento vivo, mantendo-se atento às investidas.

Para Corrêa, princípios com liberdade e autonomia estão sob ataque, instalando-se em seu lugar “uma lógica normativa de proteção de vulneráveis centrada na família e não nas pessoas”. “A meu ver, não estamos frente a uma posição antidireitos, mas, sim, enfrentando uma depuração neoconservadora dos fundamentos epistemológicos dos direitos humanos. E esse é um indício forte de que o próprio campo dos direitos humanos está em disputa, seja no Brasil ou internacionalmente”, disse.

Nesse sentido, para a pesquisadora, torna-se relevante a coincidência do documento ser lançado em 20 de outubro, mesmo dia em que Jair Bolsonaro foi acusado de crimes contra a humanidade — além de outras oito acusações — no relatório final da CPI da Covid no Senado. Isso porque as discussões que abarcam temas como genocídio e crimes contra a humanidade “são um legado fundamental da trajetoria intelectual e política que trouxe o debate e os processo de aplicação de direitos humanos de 1948 até os dias de hoje”.


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