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23/09/2021

“O nosso papel fazemos historicamente: preservamos, compartilhamos, confluímos”, diz Nego Bispo

Em entrevista para publicação lançada pela Conectas, liderança quilombola traça perspectivas para a crise climática

Nego Bispo, lavrador, formado por mestras e mestres de ofícios, morador do Quilombo Saco-Curtume no Piauí. Foto: Guilherme Fagundes Nego Bispo, lavrador, formado por mestras e mestres de ofícios, morador do Quilombo Saco-Curtume no Piauí. Foto: Guilherme Fagundes

A crise climática já é realidade. Cabe agora, mais do que nunca, sociedade civil, movimentos sociais, governos e judiciário construírem uma agenda que possa trabalhar pelo futuro das próximas gerações, desde uma perspectiva de direitos humanos. 

O desafio, contudo, é grande, especialmente em países com governos que negligenciam o problema. Nesta semana, por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro usou seu discurso de abertura da  76ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, para desenhar para a comunidade internacional um país que respeita a diversidade da Amazônia. Na prática, considerando a série histórica do Deter/Inpe desde 2015, os períodos entre 2019-2020 e 2020-2021 tiveram a maior área de derrubada de florestas já registrada. 

Para Nego Bispo, lavrador, formado por mestras e mestres de ofícios, morador do Quilombo Saco-Curtume no Piauí, muitas respostas para a grave questão climática estão na vida das pessoas. “Ao invés de ter referências teóricas, ter referências históricas. No Piauí, tem vários quilombos. É só ter os quilombos como referência. Priorizar o ser em vez do ter”. 

Na semana da Mobilização Global pelo Clima, a Conectas publica entrevista de Nego Bispo para o e-book recém-lançado “Clima e Direitos Humanos – Vozes e Ações” (disponível neste link), produzido pela organização com o apoio do Instituto Clima e Sociedade. 

Leia a entrevista: 

Conectas – Existe uma relação entre colonialismo e crise climática?

Nego Bispo – As alterações climáticas são um produto do colonialismo, que vem dos eurocristãos monoteístas. No Gênesis, Jeová proibiu Adão e Eva de comer o fruto do Jardim do Éden. Ou seja, de ter uma relação orgânica com as demais vidas. O deus da Bíblia amaldiçoou a terra onde esse povo vivia, disse que as ervas seriam daninhas, e que só poderiam comer com o suor do rosto, o trabalho, que criou como castigo. Como precisam transformar, sintetizar a natureza, são responsáveis pela questão climática. As ciências agropecuárias também chamam as ervas de daninhas. Se nasce um pé de pequi no meio de uma plantação de soja, os colonialistas jogam veneno. Só não é daninha a soja, que é plantada pelo esforço dos colonialistas. Só tem importância o que vem do trabalho. Quando devastam as plantações nativas pelas ervas não daninhas, de laboratório, quase que de plástico, alteram a vida. Não só o clima, o cosmos. 

Conectas – Você chegou a participar da Conferência do Clima de Nova York em 2019. Quais foram as suas impressões?

Nego Bispo – É uma grande demagogia, uma hipocrisia. Esse povo se reúne para se iludir. Não se resolvem questões com grandes eventos; não do integrado para o segmentado, mas do segmentado para o integrado. Talvez fosse melhor se, nesse tempo em que se reuniram, plantassem uma árvore no quintal, distribuíssem mudas, produzissem frutas. Na semana passada, visitei amigos no Matopiba [região de avanço do agronegócio entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia]. Em 1995, tinha muita mata bonita. Dessa vez, cheguei a percorrer 250 km de terras com soja, que ninguém come aqui, a não ser o óleo das sobras. Ela vai para a Europa, para a China. Como os europeus querem discutir clima se compram a soja que devasta o cerrado? Na sociedade colonialista, os trabalhadores constroem, os empresários consomem e os intelectuais comentam. Que doideira. 

Conectas – O sistema de justiça pode ter uma função contracolonial? 

Nego Bispo – A Justiça é um comércio ultracolonialista para juízes, advogados, promotores, polícia, Parlamento – que elabora as leis – e autores de livros que ganham dinheiro. É um mercado que criminaliza toda e qualquer coisa que ataca o colonialismo. A Justiça serve para quê? Proteger a vida? É para proteger a propriedade. Recorrer ao Estado colonialista para me defender do colonialismo é a mesma coisa que a formiga ir para a festa do tamanduá. Dificilmente volta. Nossa comunidade foi atacada por vários empreendimentos, principalmente linhas de transmissão. Em uma das negociações, dissemos para os colonialistas que o primeiro EIA [Estudo de Impacto Ambiental, parte do licenciamento ambiental] foi a carta de Pero Vaz de Caminha. Até agora, só judicializamos a questão da Transnordestina. Mas, primeiro, paramos na marra. O problema é que, quando vai para a Justiça, perdemos o poder de decisão e a questão vai para o dinheiro, que sempre é referência. Quanto custa a cantiga do pássaro? Como calcular? 

Conectas – A afirmação dos direitos humanos e socioambientais pode servir de apoio à luta contra a crise climática?

Nego Bispo – Eu discuto os direitos orgânicos, de ser. Os direitos sintéticos são de ter. Apenas a espécie humana sintetiza a vida. E as outras, para onde vão? Não tem gordura no corpo humano? Tem na soja, no milho, nas amêndoas. Tem uma confluência, uma parte muito parecida. Tem água nas plantas, no nosso corpo, nos animais, nas pedras. Por que dizemos que são inanimadas? Quem inventou que somos mais importantes? Falar de direitos humanos é subestimar outros direitos. É mais uma categoria do mercado judiciário

Conectas – Qual é o papel de populações e organizações quilombolas na crise climática?

Nego Bispo – O nosso papel fazemos historicamente. Preservamos, compartilhamos, confluímos. A questão é: qual é o papel de vocês? É tomar como referência as trajetórias históricas, é sair do ilusionismo e cair na realidade. Ao invés de ter referências teóricas, ter referências históricas. No Piauí, tem vários quilombos. É só ter os quilombos como referência. Priorizar o ser em vez do ter.

Leia também a entrevista com Ailton Krenak, publicada no e-book “Clima e Direitos Humanos – Vozes e Ações”

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