A corrida global por fontes de energia renovável é apresentada como solução urgente para frear a crise climática. No entanto, em territórios tradicionalmente ocupados por populações negras, rurais e quilombolas, a expansão acelerada de megaprojetos “verdes” levanta uma questão fundamental: quem está pagando o preço da energia limpa?
Na Chapada do Araripe, sul do Piauí, a Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Serra dos Rafaéis enfrenta os impactos diretos da instalação de parques eólicos em larga escala, que chegaram na região na última década. Embora o discurso oficial fale em desenvolvimento e sustentabilidade, o cotidiano dos moradores tem sido marcado por aumento da poeira, ruídos constantes dos aerogeradores, rachaduras nas casas e danos a cisternas causados pelas vibrações das obras e circulação de máquinas pesadas.
Além dos prejuízos materiais, a saúde da população tem sido afetada. Há relatos de problemas respiratórios, estresse e distúrbios psicológicos associados à presença massiva dos equipamentos. A energia gerada — mais de 1.600 MW em uma área equivalente a 138 mil campos de futebol — é destinada majoritariamente a empresas e indústrias do Sudeste do país, enquanto os quilombolas convivem com quedas frequentes no fornecimento, tarifas elevadas e ausência de benefícios diretos. “Essa energia é para empresas e indústrias do Sudeste do Brasil. E a gente aqui continua pagando a conta cara e enfrentando queda de energia constantemente”, denuncia um morador da comunidade.
As denúncias vão além dos impactos físicos. Moradores relatam a violação ao direito à consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da OIT e ignorado no processo de licenciamento ambiental. “A comunidade não foi consultada e não sabia que o parque eólico ia chegar. Chegaram e começaram a medir tudo, inclusive perto das casas”, contou uma moradora.
A atual situação na Serra dos Rafaéis é resultado de sucessivas falhas e atropelos no processo de planejamento e licenciamento ambiental, incluindo violação ao direito à consulta livre, prévia e informada da comunidade quilombola e ao respectivo protocolo de consulta. Essa é uma das conclusões do projeto Energia Eólica no modelo centralizado e Mapeamento socioambiental participativo como elemento contributivo para a governança na Comunidade Quilombola Serra dos Rafaéis – PI, com execução entre 2023 e 2024. Apoiado pela Conectas, o trabalho combinou levantamento de dados geoespaciais, oficinas de cartografia social, rodas de conversa, aplicação da metodologia Net-Map e um intercâmbio com comunidades paraibanas que adotam modelos alternativos de geração energética.
O projeto foi coordenado por Ricélia Maria Marinho Sales, professora de Ciências do Ambiente, Universidade Federal de Campina Grande, Campus Pombal (PB) e pela Associação dos Remanescentes de Quilombo da Comunidade Serra dos Rafaéis.
Entre os principais resultados, destaca-se a construção coletiva de mapas temáticos e de um diagnóstico participativo sobre os impactos dos complexos eólicos na vida da comunidade. A população também elaborou sua própria Cartilha de Governança Energética Comunitária, com orientações práticas para proteção do território, exigência de consulta prévia e formulação de modelos energéticos mais justos. A iniciativa permitiu que os moradores identificassem os principais atores e relações de poder no território, fortalecendo sua capacidade de resistência, incidência política e tomada de decisão coletiva. A experiência da Serra dos Rafaéis passa, agora, a servir de referência para outras comunidades tradicionais diante dos mesmos desafios.
Como forma de inspirar outras possibilidades, o projeto promoveu um intercâmbio com quilombolas e agroindústrias da Paraíba que utilizam energia solar em modelo distribuído, com benefícios diretos para as populações locais. A experiência mostrou que é possível aliar sustentabilidade ambiental com justiça social, promovendo desenvolvimento comunitário, autonomia econômica e soberania energética.
A energia renovável não pode ser pensada apenas como uma solução técnica para a crise climática. Ela precisa considerar os impactos sociais e ambientais nos territórios onde é implantada, garantindo justiça energética e protagonismo comunitário. Sem isso, a chamada energia limpa continuará mascarando antigas práticas de exclusão e violação de direitos.