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30/07/2020

Como pescadores e marisqueiras são impactadas pelo Porto de Suape há mais de 40 anos

Considerado o “motor do nordeste”, o Complexo Industrial e Portuário viola direitos humanos e o meio ambiente durante quatro décadas

Estaleiros Promar e Atlântico Sul, pertencentes ao CIPS (Complexo Industrial e Portuário de Suape), localizado na região metropolitana de Recife (PE). Estaleiros Promar e Atlântico Sul, pertencentes ao CIPS (Complexo Industrial e Portuário de Suape), localizado na região metropolitana de Recife (PE).

Em junho deste ano, o PCN (Ponto de Contato Nacional), órgão internacional responsável por monitorar o cumprimento das Diretrizes da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), concluiu um processo de análise iniciado em 2015 a respeito das violações cometidas pela multinacional Van Oord contra comunidades tradicionais da região de Suape, litoral sul de Pernambuco. 

O PCN se baseou em uma petição assinada pela Colônia de Pescadores Z8, formada por famílias da região de Gaibu, pelo Fórum Suape, rede de associações de pescadores e marisqueiras, pela Conectas e Both Ends. O documento apontava diversos impactos ambientais e sérias violências cometidas contra os então habitantes da área durante a dragagem do Porto de Suape, realizada em 2011 para abrir e aprofundar um canal, viabilizando a expansão de um estaleiro no local. 

Após cinco anos de avaliação, que incluiu sessões de mediação entre representantes das comunidades atingidas e da empresa, a entidade concluiu ter havido severos impactos ambientais e de direitos humanos contra as comunidades que ali viviam e apresentou recomendações a serem adotadas pela empresa. Entre elas, a instalação de corais artificiais – em uma tentativa de remediar danos avaliados como irreparáveis ao ecossistema local – e a implementação de um programa de saúde voltado às pessoas da região.

Este episódio de meia década, no entanto, é apenas mais um capítulo do longo drama que, há mais de 40 anos, aflige as famílias atingidas pelo Porto de Suape, pelos impactos causados foi também chamada de “Belo Monte esquecida.

Porto de Suape

O Complexo Industrial Portuário de Suape é um megaempreendimento de 13.500 hectares cuja construção se deu a partir de 1978 entre os municípios de Ipojuca e Cabo Santo Agostinho, em terras habitadas por comunidades tradicionais há diversas gerações.

Com mais de 100 empresas – entre elas a Unilever, a Solar Coca-Cola, a Pepsico Brasil, a Toyota e a Fedex -, e um capital social de R$ 1,2 bilhão, o complexo chegou a ser apontado como o “motor do nordeste” pelo então governador Eduardo Campos (PSB).

Para além da geração de renda e de empregos, propagandeados pelos governos estadual e federal, o porto foi responsável pela remoção de cerca de 20 mil pessoas que viviam na região antes do empreendimento.

De acordo com dados do Fórum Suape, havia 25 mil habitantes na região de Suape. Hoje, são menos de 7 mil. Impedidos de entrarem em seus antigos territórios, estes remanescentes ainda são tratados como invasores e alvo frequente de ameaças e represálias.

A expansão do porto

A implementação e a ampliação do porto, entre as décadas de 1970 e 2000, levou ao despejo em massa de comunidades que originalmente habitavam a região onde hoje está compreendido o perímetro industrial. Já entre 2009 e 2013, o complexo passou por um novo processo de expansão,  que resultou na construção de um píer petroleiro e a ampliação da área do estaleiro Promar S/A.

Para o empreendimento, foi necessário o aprofundamento do canal e o assoreamento da Ilha de Tatuoca, localizada a poucos quilômetros do porto, acompanhado de diversas obras de dragagem. 

As obras impactaram o fornecimento de água potável às mais de 80 famílias residentes da ilha, salinizando suas cacimbas. Além disso, boa parte do material dragado foi despejado em regiões sensíveis, contaminando áreas de pescado e mariscagem e afetando drasticamente a alimentação da população local. Como resultado, houve um gradual adoecimento coletivo, especialmente entre as mulheres, que apresentaram infecções na pele, no aparelho reprodutivo e alergias graves. 

Por fim, as ações de expansão do porto causaram a destruição de grande parte da ilha. A maioria das pessoas que a habitavam foi transferida para um conjunto habitacional do programa Minha Casa, Minha Vida. Intitulado pelo governo de “Vila Nova Tatuoca”, o aglomerado de casas de 40 m² foi construído em região afastada do mar e de terras produtivas. Pescadores, quilombolas e marisqueiras foram, assim, privados de seus meios de subsistência: a pesca e o plantio.

Outros moradores da ilha, que tentaram resistir à remoção, foram despejados de forma violenta e hoje vivem em periferias e favelas de Recife.

“É muito triste ver como os antigos habitantes dessa área tiveram seus territórios pesqueiros e manguezais prejudicados. Estamos falando de pessoas que, por gerações, tinham plena autonomia sobre suas vidas e com a chegada do porto foram relegadas à pobreza e à dependência de programas sociais”, aponta Paula Nunes, advogada da Conectas.

Acordos desonestos

O processo de desapropriação realizado para a instalação do porto é marcado por graves falhas e acordos desonestos, conforme aponta o relatório “Complexos industriais e violações de direitos – O caso Suape – Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros”, produzido pela Plataforma DHESCA e publicado em 2018.

Entre as principais queixas apresentadas pelas famílias estão: baixos valores oferecidos por suas casas e indenizações irrisórias e que, em muitos casos, nem sequer foram pagos; os métodos de cálculos, que não consideraram devidamente as perdas sociais, materiais, econômicas, culturais e afetivas; a falta de informações e de transparência; e a violência psicológica contra as famílias

De acordo com resposta de Suape a pedidos de acesso à informação realizados pelo Fórum Suape no primeiro semestre de 2018, são 302 ações petitórias e de reintegração de posse ajuizadas pela empresa contra pessoas que habitavam a área onde hoje está instalado o Complexo. Ao todo, a empresa afirma terem sido realizados 1.541 acordos entre 2007 e 2017. 

A empresa nega que parte de seus acordos tenham sido feitos sem mediação da Justiça. Porém, a versão é contestada por muitos relatos de antigos moradores. A Associação de Pequenos Agricultores de Ponte dos Carvalhos possui uma lista com, pelo menos, 36 nomes de antigos posseiros de Jurissaca, Boa Vista I e Ilha dos Martins que relatam terem sido removidos mediante acordos extraoficiais com o Porto de Suape, pelos quais eles receberiam uma indenização equivalente às benfeitorias em prazo de três meses. Até onde se tem conhecimento, estes pagamentos nunca ocorreram. 

A milícia

Além de ter privado centenas de famílias a suas moradias e de seus meios de subsistência, o Complexo Portuário de Suape é acusado de contratar uma milícia privada para ameaçar e expulsar pessoas que resistiam à desapropriação e que estivessem insatisfeitas com ofertas de compensações consideradas insuficientes.

De acordo com o relatório da Plataforma Dhesca, a milícia teria sido operada pela Diretoria de Gestão Fundiária e Patrimonial de Suape. 

Em um dos casos mais emblemáticos que demonstra o uso de força excessiva e coercitiva contra a população local, os então habitantes da Ilha de Tatuoca passaram a ser obrigados a portar carteira de identificação, o que viola o direito constitucional de livre locomoção (art. 5º, XV, da Constituição Federal).

Muitos dos moradores que resistiram às remoções relatam terem sido ameaçados com armas de fogo. A “milícia de Suape” já foi alvo de denúncias no Ministério Público por, ao menos, três comunidades da região.

Em 2017, a Repórter Brasil teve acesso a 22 boletins de ocorrência registrados contra Suape. Entre as acusações estão danos ao patrimônio e ameaças. Os testemunhos indicam que seguranças agiram ao lado de funcionários da prefeitura de Cabo de Santo Agostinho e até de militares armados do GATI (Grupo de Ações Táticas do Interior), tropa especializada que atua em missões de alto risco. 

De acordo com a ONG, apesar das denúncias, os moradores afirmam que o número é subnotificado porque alguns policiais se negam a fazer o registro – o que é ilegal.

Os efeitos

Existem diversos relatos de pessoas que passaram a apresentar sintomas de depressão e que até mesmo cometeram suicídio após o traumático processo de remoção realizado pelo Porto de Suape.

“Dentre as famílias indenizadas, muitas foram levadas a morar nas periferias de cidades vizinhas, como é o caso de antigos moradores da Ilha de Tatuoca. Distantes do território onde nasceram e foram criadas, essas pessoas foram transferidas para espaços urbanos onde não podem exercer suas habilidades profissionais, seu trabalho no território passou a ser crime”, aponta trecho do relatório Complexos Industriais e Violações de Direitos.

Quarenta anos depois, dezenas de famílias ainda lutam por uma reparação justa e algumas ainda têm esperança em retornar a seus antigos territórios e recuperarem seu antigo modo de vida.

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