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01/01/2019

Bolsonaro presidente: é hora de cobrar respeito à Constituição

O panorama político é dos mais desafiadores da história democrática do país e os próximos quatro anos serão de resistência a retrocessos já anunciados

Jair Messias Bolsonaro assumiu a presidência em 1 de janeiro de 2019 (Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil) Jair Messias Bolsonaro assumiu a presidência em 1 de janeiro de 2019 (Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Bolsonaro toma posse neste 1º de janeiro de 2019 depois de uma transição com recuos em anúncios, desalinhamento interno entre aliados e membros do próprio partido e até denúncias de corrupção no núcleo familiar do presidente.

Depois do triunfo de Bolsonaro no segundo turno, Conectas expressou suas preocupações pelas ameaças aos direitos humanos vindas de suas propostas, sobretudo em matéria de segurança pública, meio ambiente, direitos dos povos indígenas e das minorias, combate ao trabalho escravo e liberdades de associação e de imprensa. A indicação de alguns dos ministros e ministras confirmam algumas das preocupações anunciadas. Num ministério com 22 pastas, foram indicadas apenas duas mulheres, nenhum negro ou negra. Compõem o alto escalão do governo sete ministros de origem militar — o número mais alto desde a redemocratização.

Na pasta de “Mulheres, Família e Direitos Humanos”, assume a advogada e pastora Damares Alves, voz ativa na oposição à descriminalização do aborto. A redesignação da pasta incluindo o termo “família” indica um foco do novo governo contra conquistas históricas da população LGBTs e das mulheres. A transferência da Funai (Fundação Nacional do Índio), tradicionalmente sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça, para a pasta de Damares Alves é outro ponto de alarme. A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) manifestou sua preocupação pela forte influência que as igrejas evangélicas deverão ter nas aldeias indígenas.

Não está claro se a Funai manterá suas competências para estudos sobre demarcação de terras indígenas, uma vez que fora anunciado que conflitos fundiários seriam tratados por um “conselho interministerial em processo de criação”. Há o receio de que, à medida em que os direitos dos povos indígenas e das comunidades rurais se enfraqueçam, aumente a violência contra esses grupos, afinal o Brasil já possui o terrível título de país que mais mata ambientalistas no mundo.

O padrão de recuos se repetiu após o anúncio da extinção do Ministério do Meio Ambiente. Com a repercussão negativa, o governo de transição voltou atrás e nomeou como ministro Ricardo Salles, um conhecido cético das mudanças climáticas. Não por acaso o Brasil deixou de sediar a próxima Conferência do Clima. A permanência do Brasil no acordo de Paris, entretanto, continua indefinida.

Na política externa, Ernesto Araújo promete combater o que ele denomina como “marxismo cultural” e “globalismo”. O novo chanceler pode alterar a tradição pragmática do Itamaraty nas relações exteriores, isolando o Brasil de mercados e países considerados ideologicamente de esquerda ou não alinhados aos EUA. O anúncio da mudança da embaixada brasileira de Israel para Jerusalém já gerou desconforto nas relações com os mercados árabes. O discurso de resistência ao multilateralismo já teve como alvo o Conselho de Direitos Humanos da ONU, arriscando um dos ativos diplomáticos do Brasil de ser uma voz ativa e comprometida com as liberdades e direitos internacionalmente.

O papel do Brasil na América Latina também exigirá atenção. O agravamento da crise humanitária na Venezuela exige um posicionamento equilibrado e responsável de nossa política externa, o que contrasta com algumas manifestações já feitas pelo presidente e seu entorno. O sistema de acolhimento dos venezuelanos que aqui buscam refúgio não pode ser ameaçado por medidas que criem entraves para a entrada segura dos refugiados ou que ocorram em detrimento de sua integração, seja em Roraima ou em outras partes do país.

Os planos de Bolsonaro para a segurança pública incluem reduzir o controle de armas para os cidadãos e permitir que policiais em atividade matem impunemente –o chamado “excludente de ilicitude”. O impacto dessa possível medida para os direitos humanos é claro em um país em que as taxas de homicídio e de letalidade policial já figuram entre as mais altas do mundo. Além disso, Bolsonaro pretende reduzir a maioridade penal para 16 anos, apesar das abundantes evidências que mostram a ineficácia dessa medida para reduzir a criminalidade. Já os movimentos sociais estão sob ameaça desde as eleições, quando Bolsonaro prometeu “acabar com toda a forma de ativismo”. O endurecimento da lei antiterrorista para enquadrar tais movimentos já está em trâmite acelerado no Congresso.

Não está claro se o novo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, representará um abrandamento das posições do presidente e da própria bancada da bala sobre os temas de segurança pública. Moro leva para Brasília a agenda anticorrupção de uma ala do Ministério Público que tem trazido ameaças sérias ao direito de defesa. Resta saber também qual será a reação do ministro diante de denúncias de corrupção dentro do próprio governo.

É importante monitorar de forma sistemática e denunciar as ameaças à liberdade de expressão. Já existe um alerta vermelho: Bolsonaro ameaçou cortar todas as propagandas públicas de um dos maiores veículos do país, a Folha de S.Paulo, após o jornal publicar uma matéria sobre irregularidades no financiamento de sua campanha. O presidente limitou o acesso a suas coletivas de imprensa apenas a veículos simpáticos a seu governo e recentemente restringiu o acesso a sua conta de Twitter aos jornalistas críticos.

As esferas estaduais trazem também sérias preocupações para a agenda de direitos humanos, sobretudo no Rio e em São Paulo. Os governadores Wilson Witzel (RJ) e João Doria (SP) declararam seu apoio a Bolsonaro, em especial à sua linha dura na segurança pública.

Como prefeito da capital paulista, Doria articulou táticas violentas contra usuários de drogas na região da cidade conhecida como cracolândia e em campanha declarou que a partir de janeiro a PM atiraria para matar — uma violenta inversão de valores de uma corporação cujo objetivo é, justamente, salvar vidas. Estado líder brasileiro em população carcerária, Doria promete privatizar os presídios.

Enquanto isso, Witzel sugeriu utilizar drones que disparam em operações de segurança ou mesmo usar atiradores de elite para “abater” traficantes. Na política carcerária, planeja colocar criminosos em navios no alto-mar, mais uma promessa populista, de difícil execução e inconstitucional.

O panorama político é certamente dos mais desafiadores da história democrática do país e os próximos quatro anos serão de resistência a retrocessos já anunciados. Neste contexto, a sociedade civil exercerá um papel incansável de oposição a toda e qualquer medida que represente retirada de direitos e ataques às minorias. A democracia estabelecida após a promulgação da Constituição de 1988 estará a prova. Dessa oposição poderão surgir novas lideranças e um movimento de luta por direitos mais forte e organizado. É nisso que apostamos. Conectas estará vigilante e incansável na defesa dos valores democráticos e dos direitos humanos. Não hesitaremos em denunciar retrocessos e violações e cobrar das autoridades o respeito à Constituição.

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