A lembrança do tetravô, nascido e criado no quilombo Kalunga do Vão do Moleque, Goiás, corria viva na advogada e pesquisadora Vercilene Francisco Dias, 30 anos, quando, por nove votos a dois, os ministros do Supremo Tribunal Federal garantiram atendimento emergencial na pandemia a todas as comunidades quilombolas do Brasil, dentre outros pedidos. Famílias como a dela, espalhadas em 6.300 quilombos do país, sem luz ou água dentro de casa, seriam, enfim, assistidas graças ao esforço de mulheres, como ela, protagonistas da ação que nasceu histórica: a primeira de autoria quilombola. “Nós rompemos o silêncio com a ajuda dos que vieram antes de nós.”
Como no romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Jabuti, o presente das comunidades quilombolas no Brasil do século 21 repete o passado escravista, das histórias negras esquecidas, dos direitos negados, do sofrimento que corre nas veias e na terra que cresceu com o trabalho e resistência das famílias – e sob o qual a imensa maioria não tem o direito garantido. Em um cenário nacional de extrema vulnerabilidade, o novo coronavírus “realçou o que estava péssimo”, nas palavras de Selma Dealdina, 39 anos. Ela, que nasceu contando história de enfrentamento ao racismo e luta pela terra no quilombo Angelim 3, no Espírito Santo, é hoje secretária-executiva da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos).
Enquanto o primeiro caso de Covid-19 era confirmado no Rio Janeiro e a Organização Mundial da Saúde decretava pandemia, a Conaq começou a receber pedidos de socorro dos quatro cantos do país. Era a fome, que maltratava três em quatro quilombolas brasileiros. Era a falta de água até para lavar as mãos no lar de nove em cada dez; e de saneamento básico, realidade em 2% das casas. Era o isolamento para quem já vive isolado no mato, a quilômetros do centro de saúde mais próximo – 67% dos que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde são negros.
Sem nenhum retorno concreto do governo federal e na ausência de uma política pública nacional de enfrentamento ao Covid-19, Selma, Vercilene, uma união de mulheres e outros integrantes do coletivo de assessoria jurídica Joãozinho de Mangal, da Conaq, começaram a discutir como garantir a sobrevivência dos quilombos, direito previsto na Constituição Federal. Em julho de 2020, o governo federal sancionou a lei 14.021, que deveria proteger comunidades indígenas e quilombolas na pandemia, mas não garantiu o acesso de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos. “Ali ficou claro que as omissões com as comunidades quilombolas permaneceriam. Mas é importante salientar os outros vetos, em momentos distintos, como o que não facilitou o acesso dos quilombolas ao auxílio emergencial”, afirma Maira Moreira, 30 anos, pesquisadora em quilombo e advogada negra da Terra de Direitos.
Não havia outra opção que não judicializar.
As superações das trajetórias individuais das muitas mulheres que construíram o documento coletivamente não bastariam. Se em outro momento elas teriam se encontrado pessoalmente para discutir quais seriam os rumos com outras lideranças, na pandemia tiveram de vencer a distância e a ausência de rede wifi para construírem coletivamente. “A gente não fica nos nossos gabinetes, escrevendo e dizendo as coisas, mas construindo junto do movimento. É um trabalho eminentemente coletivo e compartilhado, por isso dá certo”, afirma Layza Queiroz Santos, advogada do coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, de Minas Gerais, uma das organizações que contribuíram no processo.
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Neste Dia Internacional da Mulher, Laysa lembra como o trabalho na advocacia é um caminho muito mais longo e difícil para as mulheres – para mulheres negras e outras tantas de outras camadas. “Ver tantas mulheres protagonistas nesse processo reforça a importância da construção coletiva e da participação feminina em um espaço muito duro como é o direito”, diz.
Depois, elas venceram a escassez de dados sobre quilombolas no país para demonstrar a vulnerabilidade que sempre existiu, mas não estava nos livros. “Isso dificultou muito a produção. O governo tirou do ar as poucas informações públicas que existiam”, afirma Joice Bonfim, advogada popular e coordenadora da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia. Muitas estatísticas, produzidas por cruzamentos de dados inéditos, aconteceram naqueles primeiros meses de pandemia.
Luiza Viana Araújo, do coletivo e do ECAM (presente no DF, AP e PA), lembra emocionada dos primeiros resultados chegando em reuniões que invadiam as madrugadas. Não havia dúvidas: o pedido de socorro também morava nas estatísticas, um retrato de quem nunca foi prioridade. “Nós vivemos um aprendizado e um crescimento coletivos, de se ouvir, de entender o outro de tantos modos, de ser instigado. Foi algo muito desafiador, principalmente para as lideranças na defesa do seu povo”, diz, com a voz embargada.
Vercilene e Maira redigiram a primeira minuta do que se tornaria, a muitas mãos, a ADPF 742/2020 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), de 9 de setembro de 2020, a primeira por entidade representativa quilombola, a Conaq, protocolada pelos partidos PSB, PSOL, PCdoB, REDE e PT.
A ação reivindicava um plano pela sobrevivência de um povo: combate aos efeitos da pandemia, equipamentos de proteção individual e vagas em leitos hospitalares, distribuição de cestas básicas e o direito à água potável que o governo outrora negou. Na lista de pedidos emergenciais, incluíram o direito de não ser despejado na pandemia. Das mais de 6.000 comunidades, apenas 124 foram tituladas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e 183 por órgãos estaduais. No governo Bolsonaro, terra alguma foi demarcada.
Naquele dia, 9 de setembro, um grupo reduzido de quilombolas, majoritariamente feminino, registrou a entrega da ação em Brasília, em frente ao Supremo Tribunal Federal, que decidiria pelo desaparecimento ou não de milhares de pessoas. Vercilene reviveu o isolamento da família e da comunidade. Ela viveu com os padrinhos a maior parte da infância porque não havia comida suficiente na casa do pai. “Passei tanto tempo longe que a gente se fortalece para resistir a tudo.” Mas era importante para o movimento que corpos negros, de lideranças a advogadas, ocupassem aquele espaço. “Era viver a solidão diante do que poderia ser um mar de gente. Cadê as pessoas? Cadê nosso povo? Mas a gente estava ali por eles, com eles, entregando nas mãos do STF, o guardião da Constituição, as nossas vidas e os nossos sonhos”, lembra Selma, da Conaq.
Na condição de amigos da corte (amicus curiae) no julgamento, a Conectas e outras organizações foram aceitas, entre elas o Instituto Socioambiental, a Educafro, a Clínica de Direitos Humanos da UERJ, a Terra de Direitos, o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental, a Federação Nacional das Associações Quilombolas e a Defensoria Pública da União. A advogada quilombola Gabriele Souza, de 32 anos, da Terra de Direitos, sentiu o pai e o avô ao seu lado quando participou da sustentação oral. “Eu me senti muito privilegiada pela oportunidade de dar continuidade a toda luta dos meus antepassados nessa busca por acesso aos nossos direitos.”
Apesar da urgência imposta pela pandemia, ou por causa dela, a resposta do STF chegou cinco meses depois, em fevereiro deste ano. Quase mil quilombolas tombaram pelo Covid-19. Por 9 votos a 2, o STF deu vitória às mulheres e às comunidades de todo o país. “Nesse contexto de ataques a instituições, essa ação contribuiu para mudar a jurisprudência brasileira no sentido das organizações que podem ascender ao STF, qualificando a Conaq e abrindo espaço para lutas futuras”, afirma Letícia Osorio, advogada colaboradora da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ.