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Violência policial: como tirar o depoimento da vítima da invisibilidade?

Relatório apresenta recomendações para que denúncias sejam apuradas e as vítimas, reparadas

Photo: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo Photo: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Ele deu um pisão nas minhas costas quando eu falei que estava gestante. Foi PM, o mesmo que levou para DP, sei reconhecer”. O relato é o de uma mulher presa no estado de São Paulo, que foi levada para o Fórum Criminal da Barra Funda, o maior da América Latina. O caso foi arquivado sem qualquer tipo de punição aos envolvidos. O mesmo aconteceu em outras 52 denúncias de pessoas que alegam terem sido vítimas de violência ou tortura policial entre os anos de 2015 a 2018. 

A invisibilidade e a irrelevância do depoimento da vítima nas investigações de violência praticadas por policiais são elementos importantes do recém-lançado “Investigações em labirinto: os caminhos da apuração das denúncias de violência policial apresentadas em audiências de custódia”, realizado pela Conectas e pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). 

No Brasil, quando uma pessoa presa afirma ter sido vítima de violência policial, a primeira oportunidade de ser ouvida e denunciar o caso seria na delegacia de polícia. Porém, na maioria dos casos, a pessoa está desacompanhada da defesa e é levada até o delegado pelos agressores. Então, a grande chance disso acontecer é na etapa seguinte, a audiência de custódia, que ocorre em até 24 horas após a prisão. Mas, na prática, não é o que acontece.

“Apesar da audiência de custódia ser um instrumento importante e o momento de maior atenção dado ao depoimento da vítima, infelizmente é uma uma oportunidade desperdiçada”, afirma Carolina Diniz, assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. 

Uma das responsáveis pelo estudo, ela explica que, na audiência, quando a suposta violência acabou de acontecer, as chances de buscar provas para investigar a violência policial (como vídeos de câmeras de segurança) e ouvir testemunhas indicadas pela vítima são maiores. No entanto, em nenhum dos 53 casos avaliados pelo relatório, por exemplo, a testemunha indicada pelas vítimas das agressões foi ouvida.

Otavio Constantino, advogado que trabalhou na seleção de casos analisados pelo relatório, afirma que há uma estrutura institucional cuja única função é blindar a investigação contra policiais. “Esperava-se que essa apresentação em 24 horas, tirando o preso do contexto da polícia e da delegacia, poderia favorecer as denúncias de violência e, de fato, favorecem em algum sentido. Porém, analisando os procedimentos e atuações dos agentes do Estado envolvidos, percebe-se que, na verdade, eles criaram várias camadas de inconstitucionalidades que escondem e descaracterizam as denúncias.”

Dados do Conselho Nacional de Justiça apontam que de 756.022 Audiências de Custódia realizadas até 25 de abril de 2021, 45.077 pessoas relataram maus tratos ou violência policial, o que corresponde a menos de 6% do total de audiências.

Como revela o relatório da Conectas e do IDDD, os documentos que deveriam servir para apurar a conduta violenta dos policiais militares- como o depoimento da própria vítima, a escuta do juiz, o exame do Instituto Médico Legal e a análise de defensores e promotores-, acabam por se deter a relatos sucintos e protocolares que não dão conta da violência física e muito menos psicológica causada às vítimas.

O caso da gestante citado na abertura desta reportagem, por exemplo, consta no laudo do exame de corpo de delito como “vítima de agressão com os pés”. Em outro, uma mulher relata: “Ele enfiou a mão no meu sutiã, colocou a mão dentro da minha calcinha para me revistar. Foram dois policiais. Foram os mesmos que me levaram para a delegacia”. No laudo, o abuso sexual se resume a: “o examinado (a) não informou sobre lesões de interesse médico-legal”.

Para o defensor público do departamento de inquéritos policiais do estado de São Paulo Diego Polachini, a questão é complexa e passa por mudanças no sistema judiciário, no executivo e no legislativo. “Há uma forte militarização no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas de cada estado. As narrativas defendidas é de que não há violência policial e que quando elas ocorrem, ocorrem de maneira justa. Precisamos rever e reavaliar todo o processo e os que participam dele.”


Recomendações para tirar as vítimas da invisibilidade

  • Na delegacia, é indicada a presença de um defensor público ou particular da vítima.
  • Na audiência de custódia, a vítima precisa ser interrogada como vítima, não como suposta autora de delito, e isso deve acontecer na ausência de policiais militares. O depoimento, gravado, precisa ser transcrito, uma vez que as filmagens são desconsideradas posteriormente.
  • Nenhum documento, testemunho ou imagem da vítima podem ser acessados ou compartilhados com batalhões de polícia.
  • Quando houver suspeita da ocorrência de violência policial, é preciso garantir a integridade da pessoa presa, de seus familiares e das testemunhas.
  • As instituições do sistema de justiça devem iniciar a apuração da violência logo após a audiência de custódia para não desperdiçar oportunidades investigativas.
  • É importante que a defensoria pública participe de todo o curso de apuração da suposta violência policial.
  • Cabe aos cartórios publicar, periodicamente, os dados das investigações com recortes de gênero, raça, região e instituições envolvidas.
  • O exame de corpo de delito deve ser realizado por uma equipe transdisciplinar, composta de médicos, psicólogos e assistentes sociais e o ambiente para a condução do exame pericial deve ser equipado nos termos do Protocolo de Istambul.
  • A investigação de policiais acusados de violência não pode ser de responsabilidade da Justiça Militar, mas de uma pasta independente.
  • O governo precisa publicar as estatísticas de violência policial periodicamente, a fim de orientar políticas de prevenção.

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