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15/07/2014

VI Cúpula dos BRICS

Declaração final traz mais cifras e menos direitos humanos



Repetindo o roteiro da cúpula anterior, líderes do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) reunidos em Fortaleza abriram mão de compromissos concretos com a proteção dos direitos humanos.

A declaração final do encontro, publicada no fim da tarde hoje, registrou que os líderes dos cinco países assinaram o Acordo Constitutivo do NBD (Novo Banco de Desenvolvimento), a mais nova instituição financeira multilateral do mundo. Também foi assinado o Tratado de Estabelecimento do Arranjo Contingente de Reservas dos Brics, uma espécie de Fundo Monetário Internacional (FMI) de alcance mais restrito. A criação de ambos havia sido anunciada na Cúpula de Durban, em 2013, mas apenas agora tais mecanismos passam a ter validade jurídica.

Logo após anúncio da criação do Banco, Conectas e outras 8 entidades cobraram dos líderes o cumprimento de cinco pontos mínimos que devem ser incorporados às estratégias e às políticas operacionais do NBD antes que o banco multilateral faça o seu primeiro desembolso (ver carta). As entidades demonstraram preocupação com a prioridade dada ao financiamento de projetos de infraestrutura e com a reprodução de modelos violadores dos direitos humanos que fazem parte do histórico de outras instituições financeiras internacionais. As organizações que assinaram a carta recomendaram ao governo brasileiro que os responsáveis pelo NBD estabeleçam diretrizes e políticas socioambientais e de respeito aos direitos humanos, certifiquem-se de que haverá a realização de consulta livre, prévia e informada antes da realização de projetos com impacto sobre a vida de povos indígenas e tribais e adotem políticas sólidas de transparência e acesso à informação.

Em Fortaleza, Conectas qualificou o resultado da cúpula de “decepcionante” no que diz respeito a direitos humanos. Para Laura Waisbich, assessora de Política Externa da Conectas, “é decepcionante que a adoção de medidas concretas se deu apenas na área econômica, como a criação do banco. A Declaração Final da Cúpula menciona várias crises de direitos humanos no mundo, mas observa-se apenas palavras, não ações. Estamos falando de cinco países relevantes, que podem muito mais do que apenas demonstrar preocupação”.

“Temos também que lembrar que, juntos, os Brics equivalem a mais de 40% da população mundial. E que essas pessoas enfrentam diariamente severas violações de direitos e cerceamento de suas liberdades. A relação privilegiada entre os países do bloco deve servir para a cobrança por melhorias em direitos humanos. Não cabe a alegação de que, na diplomacia, a manutenção de boas relações dependa de concessões. Direitos humanos não são negociáveis”, completa Waisbich.

Leia abaixo entrevista completa com Laura Waisbich e Caio Borges, representantes da Conectas que acompanharam o encontro em Fortaleza:

1. Qual o resultado da cúpula? Houve avanços em relação a Durban?

Laura Waisbich – Os resultados na área econômica e financeira são, de longe, muito mais concretos se comparados com a parte relativa a temas sociais e direitos humanos. A Declaração Final da Cúpula menciona várias crises de direitos humanos no mundo, mas observa-se apenas palavras, não ações. O texto adotado é extenso e mostra uma abertura à inclusão de questões da atualidade. Mas cresce a sensação de que quando o tema é sensível, como direitos humanos, a linguagem genérica é que impera. O caso da Síria é um bom exemplo, já que pouco se avançou em relação à Declaração do ano anterior, em Durban. Não basta só pedir acesso humanitário seguro, é preciso se engajar com as partes do conflito para que a ajuda chegue a quem precisa. E mais, o peso dos BRICS no montante de doações humanitárias às vítimas da guerra síria é muito baixo se comparada à dimensão de suas economias. A Conectas e outras organizações de Brasil, Índia e África do Sul pediram expressamente aos negociadores do texto que um compromisso para incremento nas doações humanitárias dos cinco países estivesse presente na Declaração, o que não ocorreu. Estamos falando de cinco países relevantes, que podem muito mais do que apenas demonstrar preocupação diante de graves crises de direitos humanos.

 2. A criação de um novo banco multilateral responde a um dos objetivos centrais do bloco. Por que ele foi alvo de críticas?

Caio Borges – A criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) é um fato marcante porque é a primeira iniciativa prática do bloco. Apesar de já existirem cinco grandes bancos multilaterais de desenvolvimento em operação atualmente e vários outros bancos nacionais, ainda há uma carência de fontes de financiamento para projetos de longo prazo nos países em desenvolvimento. A preocupação de organizações como a Conectas é com as prioridades do recém-criado NBD. Com base na realidade dos bancos nacionais de desenvolvimento dos países do BRICS, há um risco de que o novo banco torne-se mais uma ferramenta de apoio a modelos de desenvolvimento que privilegiam métricas e indicadores de desempenho econômico do que um mecanismo de promoção de direitos fundamentais e da cooperação entre os povos para a superação de injustiças sociais. Caso esse prognóstico realmente mostre-se verdadeiro, o NBD, ao invés de representar uma solução inovadora, repetirá os mesmos erros que outros bancos multilaterais cometeram no passado.

3. O que o banco pode fazer para não reproduzir práticas violadoras que são vistas em outras instituições de financiamento ao desenvolvimento?

Caio Borges – As políticas e processos do NBD deverão sempre colocar no centro as pessoas, e não o crescimento econômico. Em primeiro lugar, o novo banco deve ter diretrizes claras para concessão de crédito nas dimensões socioambiental e de proteção aos direitos humanos. Em segundo, o NBD deve averiguar se as comunidades afetadas foram devidamente consultadas sobre a realização dos projetos. O NBD também deverá ter políticas sólidas de transparência e de acesso à informação. Neste ponto o Acordo Constitutivo do NBD trouxe algo de positivo ao dizer que o Banco deverá ser transparente em suas atividades e que serão elaboradas regras para acesso à informação. Ainda, as preocupações das comunidades com os projetos efetivamente deverão se converter em medidas de mitigação de impactos ou mesmo de reavaliação de decisões. Portanto, deve haver espaços institucionalizados de diálogo e participação em que possam estar comunidades afetadas, sociedade civil interessada e demais atores direta ou indiretamente afetados pelas atividades do banco. Por último, o NBD deverá criar um mecanismo de queixas e de solução de conflitos que possa emitir recomendações para a alteração de projetos danosos ao meio ambiente ou que violem direitos humanos.

4. As reuniões dos BRICS são sempre fechadas, quase impenetráveis para a sociedade civil. Em Fortaleza foi diferente?

Laura Waisbich – A lógica do isolamento continuou. Enquanto o encontro entre chefes de Estado acontecia, diversos movimentos e organizações sociais se reuniam em locais distintos. Queremos ser ouvidos também antes, quando a agenda está sendo construída. Essa é também uma das demandas de um grupo de ONGs de diferentes países dos BRICS.  Por outro lado, cabe mencionar que, se compararmos com a Cúpula passada, houve expressivo aumento da participação da sociedade civil brasileira. É certo que o fato do encontro ter acontecido aqui contribui. Mas nas diversas atividades que Conectas participou em Fortaleza ficou claro que diferentes grupos estão cada vez mais preocupados com os rumos do bloco. Por exemplo, a criação de um banco que venha a não primar pelos direitos humanos impacta de forma enorme na vida das pessoas. O maior monitoramento social da política externa brasileira é muito positivo. Em um Estado Democrático de Direito, a política externa deve ser uma política pública.

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