Atualizado em 23/8 às 11h20
Começou hoje (22/8) em Genebra, na Suíça, a segunda Conferência dos Estados Partes do TCA (Tratado sobre o Comércio de Armas), único acordo global a regular a compra e venda de armas e munições convencionais – categoria que inclui desde pistolas até tanques de guerra e aviões de combate. O encontro reúne governos, empresas e sociedade civil para discutir questões centrais sobre o funcionamento do acordo, como o modelo dos relatórios que devem ser submetidos anualmente pelos países e as medidas que serão adotadas para garantir a universalização do tratado e a efetiva implementação de suas disposições.
Apesar de ser o quarto maior exportador mundial de armas pequenas segundo o Small Arms Survey 2015 e de ter sido um dos primeiros países a assinar o TCA, o Brasil desempenhará um papel coadjuvante na conferência. O país poderá se manifestar em reuniões reservadas, mas não terá poder de voto nas decisões sobre o funcionamento do tratado.
A marginalidade do Brasil no TCA se deve à demora no processo de aprovação do decreto legislativo de ratificação do texto. Só no Executivo foram 17 meses entre a tradução oficial e a análise pelos diferentes ministérios. Enquanto a ratificação não sai, o Brasil participa dos debates como observador.
Neste momento, o decreto está em análise nas comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e Constituição e Justiça da Câmara. Nesta última, já recebeu parecer favorável do relator Bruno Covas (PSDB-SP). Se for aprovado nas comissões, vai a plenário e segue para o Senado antes de voltar ao Executivo para a conclusão do processo.
Durante a plenária de abertura da reunião realizada na manhã desta segunda, Neil Benevides, da representação permanente do Brasil junto à Conferência do Desarmamento da ONU, afirmou que o TCA “deve respeitar as decisões nacionais soberanas e a existência de aspectos sensíveis relacionados a esse comércio específico”, em referência à apresentação obrigatória de relatórios anuais públicos, por parte dos países, com o detalhamento das transferências internacionais de armas e munições.
Benevides defendeu, ainda, que a prioridade dos Estados Partes e dos signatários seja a universalização do acordo, “encorajando a adesão de países ao tratado, especialmente os Estados que mais exportam, com vistas a evitar lacunas e a perpetuação dos efeitos negativos provocados pelo comércio internacional desregulado”.
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Para Jefferson Nascimento, assessor de Política Externa da Conectas, “é grave que o Brasil mostre apoio limitado à transparência total dos relatórios obrigatórios porque eles são centrais para o principal objetivo do TCA, que é garantir a responsabilidade das transações internacionais”. “Não é de hoje que ouvimos esse frágil argumento de que as informações sobre as vendas de armas são sensíveis por questões comerciais. Na prática, o discurso da excepcionalidade só serve para justificar a opacidade desse mercado e tem um efeito nefasto sobre a população porque impede o controle efetivo dos fluxos de armamentos”, explica.
Nascimento comentou, ainda, a menção de Benevides à necessidade universalização do TCA. “Sem dúvidas esse é um aspecto fundamental para a efetividade do acordo, mas chama atenção que o Brasil seja tão vocal a esse respeito quando ele mesmo ainda não foi capaz de garantir a ratificação. Não podemos mais nos esconder atrás dos trâmites burocráticos para justificar uma posição é que essencialmente política”, afirma Nascimento. Ele menciona, como contraponto, a ratificação em menos de quatro meses do Acordo de Paris sobre a Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima.
Déficit de transparência
Ao todo, 87 países já ratificaram o TCA – entre eles, importantes produtores e exportadores de armas como Reino Unido, França, Alemanha, Espanha e Itália. Ao entrarem para o acordo, em vigor desde dezembro de 2014, eles se comprometeram a elaborar relatórios anuais detalhando importações, exportações e doações. Isso é importante porque o único controle feito pela ONU antes do tratado era voluntário e estava marcado pela sub-notificação.
Organizações de direitos humanos que apoiaram por anos a criação do TCA defendem que, com mais transparência, será possível conhecer e controlar os Estados que abastecem conflitos e governos autoritários com armas e munições, além de cercear o tráfico e desvios ilegais, como a revenda para países sob embargo.
Esse aspecto é especialmente relevante no caso do Brasil. O país é um dos mais importantes fabricantes mundiais, mas ocupa apenas o 43o lugar no ranking de transparência da Small Arms Survey, que avalia 49 países que exportaram no mínimo US$ 10 milhões em armas pequenas por pelo menos um ano desde 2001. No índice que vai até 25 mil pontos (quanto mais se aproximar do valor máximo, mais transparente), o Brasil soma apenas 7 mil – a mesma pontuação da China – e fica atrás de nações como Rússia, México e Paquistão.
Segundo dados compilados pela ONU a partir de informações do governo federal e também de outros países, o valor das exportações brasileiras de armas e munições cresceu 171,4% desde 2006, chegando em 2015 a US$ 364,7 milhões.
Se a importância da indústria de armamentos cresce exponencialmente para o país, a política nacional que regula as transferências internacionais, por outro lado, continua a mesma. Conhecida como PNEMEN (Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar), a norma foi criada em 1974, durante a ditadura militar, e é até hoje sigilosa.
Campanha pela ratificação do TCA
Em maio, uma coalizão formada por cinco organizações brasileiras lançou uma campanha para pressionar o Congresso a ratificar o TCA. Conectas, Anistia Internacional, Dhesarme, Instituto Igarapé e Instituto Sou da Paz defendem que o tratado evitará que armas e munições brasileiras sejam usadas por governos genocidas ou abasteçam o terrorismo, além de dificultar a reentrada de armas ilegais que alimentam a violência urbana dentro do próprio país.
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Armamentos brasileiros já foram encontrados na Costa do Marfim, na África, mesmo com a vigência de um embargo que restringia a venda desses materiais para o país. Há, ainda, indícios de uso de armas brasileiras no Iêmen, no Oriente Médio, onde pelo menos 3 mil pessoas foram mortas desde março de 2015, de acordo com dados da ONU.