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30/01/2023

Tragédia yanomami: os avisos que o governo Bolsonaro não quis ouvir

Ao ignorar os pedidos de socorro da comunidade indígena, as denúncias da sociedade civil e agir ativamente a favor do garimpo ilegal na maior terra indígena do país, a gestão federal anterior e aliados assinaram a sentença de morte de uma população

Crianças yanomani em atendimento de urgência (Foto: Sesai/Divulgação)
Crianças yanomani em atendimento de urgência (Foto: Sesai/Divulgação)

Para os yanomami, não existe diferença entre o que se sonha e o que se vive acordado. Tudo faz parte da realidade. “Quando os sonhos dizem respeito ao coletivo, eles compartilham”, explicou à revista Gama a antropóloga Hanna Limulja, autora do livro “O Desejo dos Outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami”. “Por exemplo, se num sonho aparecer perto da casa um oka pë, que é um feiticeiro inimigo, tem que tomar cuidado para não se afastar muito naquele dia.”

Apesar dos avisos oníricos, a ameaça ganha outras proporções quando o oka pë assume a forma de presidente do Brasil. Entre 2019 e 2022, os yanomami, que detêm a maior reserva protegida do Brasil  – a Terra Indígena Yanomami, que fica localizada nos estados de Amazonas e Roraima – , se tornaram um dos grupos indígenas mais afetados pela política de desmonte promovida pelo governo de Jair Bolsonaro. 

O relatório “Yanomami sob ataque”, da Hutukara Associação, publicado em abril de 2022, estimou a existência de 20 mil garimpeiros dentro da TI Yanomami, ligados ao crime organizado, ao tráfico de drogas e a empresários. O levantamento também apontou a existência de casos de casamento forçado entre garimpeiros e indígenas em troca de comida e armas de fogo, estupro de menores, rapto de crianças, aliciamento e trabalho escravo.

Um dos resultados da violência: 570 crianças foram mortas pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome, em quatro anos, de acordo com dados obtidos pelo portal Sumaúma. Isso representa um aumento de 29% no número de mortes de crianças com menos de 5 anos por causas evitáveis. 

A invasão dos garimpeiros ilegais também contribuiu para o aumento de casos de malária na região. De acordo com o Sivep-Malária (Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Malária), os yanomami representam 9,3% do total de casos de malária no Brasil, sendo que sua população representa 0,013% da população brasileira.

Diante da crise sanitária, o Ministério da Saúde do governo Lula decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Mas essa crise não chegou sem aviso. 

A queda do céu

Em junho de 2020, em meio ao caos da pandemia de Covid-19, lideranças dos povos Yanomami e Ye’kwana deram um grito de socorro com a campanha #ForaGarimpoForaCovid, que contou com o apoio da Conectas. Na ocasião, a campanha pedia mobilização das autoridades para a desintrusão urgente da Terra Indígena Yanomami, sob risco de entrarem para a história como responsáveis por milhares de mortes e o genocídio daquela população. 

Um mês depois, em julho de 2020, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), órgão vinculado à OEA (Organização dos Estados Americanos), emitiu uma resolução que outorgou medidas cautelares a favor da proteção dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana. Para a CIDH, já em 2020, estas populações estavam em situação grave e corriam risco de danos irreparáveis.

“A decisão da CIDH é, sobretudo, o reconhecimento pelo mais importante órgão da região da gravidade da situação indígena no Brasil diante da pandemia, especialmente nos casos dos Yanomami e Ye’kwana”, afirmou, na ocasião, Camila Asano, então diretora de programas da Conectas, atual diretora-executiva, e representante da entidade como conselheira no CNDH. “O país, como signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, é obrigado a cumprir sua parte e seguir as observações da CIDH.”

Sono sem sonho 

Organizações indígenas, indigenistas e defensoras dos direitos socioambientais também recorreram à Justiça brasileira diante das invasões de garimpeiros no território indígena durante a pandemia. Em junho de 2021, o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou a ADPF 709, e por unanimidade, determinou a proteção dos povos Munduruku e Yanomami, em razão da escalada de invasões e conflitos nestes territórios, com ameaças de massacre e violência armada contra as populações indígenas residentes dos locais, além do desmatamento de 13.230,5 hectares de floresta em territórios indígenas entre agosto de 2020 a março de 2021 em razão de atividades ilegais.

A medida foi proposta pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) em conjunto com PSB, PSOL, Rede, PCdoB, PT e PDT, e teve a colaboração da DPU (Defensoria Pública da União), ISA (Instituto Socioambiental), Comissão Guarani Yvyrupa, MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos), Terra de Direitos, Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ABA (associação Brasileira de Antropologia), Cita (Conselho Indígena Tapajós Arapiuns) e Conectas – entidades que participam da ação como amici curiae.

“Houve um enfraquecimento de instituições como a Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que contou com cortes de fundos, mas também com uma politização destes órgãos. As pessoas que estão à frente, desde que Bolsonaro assumiu a presidência, não são aptas, não conhecem a temática indígena e tampouco estão ali para proteger esses povos”, afirmou a advogada Júlia Neiva, coordenadora do programa Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas. “É evidente que foram colocadas para atender a interesses do governo Bolsonaro, os quais não vão ao encontro da proteção dos indígenas.”

Nem mesmo as decisões da Corte, que atenderam parcialmente os pedidos dos autores da ação no sentido de proteger os yanomamis, foram cumpridas.  Depois do anúncio oficial da crise, o STF já identificou o descumprimento de determinações judiciais e afirmou haver indícios de que o governo de Jair Bolsonaro prestou informações falsas à Justiça sobre a assistência e proteção aos yanomami. A Corte vai apurar o caso. 

Para a comunidade yanomami, no entanto, o veredicto já foi dado há tempos pelo líder Davi Kopenawa, no livro “A Queda do Céu”. De acordo com ele, a política para os yanomami é uma forma de dialogar com pessoas diferentes, coisa que os brancos não sabem fazer, porque, apesar de dormirem muito, “os brancos só sonham consigo mesmo.” 

Ação emergencial 

Já durante o governo de transição, representantes indígenas, como a atual ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara, levaram à equipe de Lula informações sobre os graves problemas enfrentados no território yanomami. Com isso, nas últimas semanas, a gestão federal começou a realizar uma série de ações para enfrentar a crise. O próprio presidente Lula visitou comunidades yanomamis. 

Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania afirmou que o governo Bolsonaro recebeu “entre 2019 e dezembro de 2022, diversas denúncias envolvendo violações de direitos dos povos indígenas, todas registradas na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos” e que a pasta está atuando para produzir um relatório “detalhado a ser entregue a autoridades nacionais e a organismos internacionais a fim de que sejam tomadas as providências cabíveis no campo político e jurídico”.

De acordo com Neiva, a ação emergencial é fundamental para salvar a vida dos indígenas. Em seguida, faz-se necessário fortalecer os mecanismos de proteção e ampliação de direitos e o Ministério dos Povos Indígenas deve ser central neste processo. “A responsabilização daquelas autoridades que ignoraram a situação não só dos yanomamis, mas de outros povos indígenas e tradicionais, sobretudo durante a pandemia de Covid-19, é algo para ter no horizonte”, conclui. 

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