Dos 612 moradores de Bento Rodrigues, estima-se que 400 estivessem presentes no dia 5 de novembro de 2015, quando um tsunami de lama varreu o subdistrito de Mariana para baixo da terra. O material tóxico estava todo contido na barragem de Fundão, uma das três estruturas do complexo industrial de extração e beneficiamento de minério de ferro da Samarco, propriedade das duas maiores mineradoras do mundo: a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton. Sete anos depois de um dos maiores crimes socioambientais do país, o acordo de reparação ainda não foi fechado.
Entre as cinco pessoas de Bento Rodrigues que morreram, estava Maria Eliza Lucas, de 60 anos, que pescava em uma lagoa, e não ouviu o barulho do perigo se aproximando. Já Antônio Prisco de Souza, de 74 anos, o seu Totó, não acreditou quando a irmã gritou para que todos corressem. Enquanto os familiares tentavam se salvar, ele foi à cozinha beber um copo d’água, e acabou sendo arrastado pela lama.
Dona Darcy estranhou o barulho crescente que vinha de fora de sua casa. Quando chegou à porta para ver do que se tratava, só conseguiu agarrar o neto Thiago, de 7 anos, e correr para o quarto. “A violência da lama desfez o abraço dos dois e o menino desapareceu. Dona Darcy conseguiu subir num colchão preso a uma laje, de onde foi resgatada pelos bombeiros”, detalhou a jornalista Cristina Serra no livro “Tragédia em Mariana: A história do maior desastre ambiental do Brasil”, no qual narra essas e outras histórias da catástrofe.
Muitos se salvaram porque conseguiram se dirigir às áreas mais altas da região, de onde assistiram de camarote ao espetáculo ambiental mais triste do Brasil nos últimos anos. “Ainda que os moradores vissem com os próprios olhos o que acabara de acontecer, era difícil de acreditar naquele pesadelo. Entre a revolta, o desespero e as incertezas sobre o futuro, eles se entreolhavam atônitos, à espera de socorro”, escreveu a jornalista.
Além de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira também foram destruídos. No total, foram 19 vidas soterradas. A certa altura, o mar pastoso — formado por uma mistura de lama e areia que sobra do processo de beneficiamento do ferro — chegou ao Rio Doce, desceu pelo seu leito e atingiu outros 38 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Para muitas pessoas atingidas, alguns danos causados são irreparáveis. “O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Wutu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar”, explicou o líder indígena e escritor Ailton Krenak, em “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”. “O Wutu, esse rio que sustentou a nossa vida às margens do rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, numa extensão de 600 km, está todo coberto por um material tóxico que desceu de uma barragem de contenção de resíduos, o que nos deixou órfãos e acompanhando um rio em coma. (…) Nos colocando na real condição de um mundo que acabou.”
Apesar de recomendações específicas para evitar que tragédias do tipo acontecessem novamente, em 25 de janeiro de 2019, outra barragem de responsabilidade da Vale rompeu em Brumadinho, Minas Gerais, causando a morte de 270 pessoas. A omissão e a conivência do Estado foram destacados por entidades da sociedade civil.
Sete anos depois da tragédia, as vítimas seguem sem fechar um acordo de reparação. No dia 19 de outubro de 2022, a Fundação Renova anunciou a entrega de 71 das 162 casas previstas para Bento Rodrigues. Mas os atingidos foram convidados a ocupar os imóveis somente a partir de janeiro de 2023, depois da data ser adiada outras três vezes.
Ainda de acordo com a Renova, outras 47 casas estão em construção no distrito de Paracatu de Baixo. Já em Gesteira, 31 famílias optaram por comprar casas em outros lugares.
O último prazo de conclusão das obras era 29 de fevereiro de 2021. De acordo com o Ministério Público de Minas Gerais, a pena para o descumprimento do prazo era de R$ 1 milhão por dia de atraso, mas as empresas recorreram, sem que fosse estipulada uma data para o julgamento do processo. Agora, não há uma data limite para a entrega das moradias. Isso porque, segundo a organização, algumas famílias ainda não definiram seus projetos.
Criada em 2016, a Fundação Renova é uma entidade responsável por cuidar da reparação aos atingidos, mantida com recursos da Samarco, da Vale e da BHP Billiton, sem participação dos maiores interessados no assunto: as vítimas.
De acordo com um relatório enviado para a Revisão Periódica Universal da ONU, preparado pela Conectas em parceria com a Cáritas, a CABF (Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão), o Movimento pelas Serras e Águas de Minas e a Avabrum (Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho), a Renova vem, ao longo dos anos, atuando “muito mais como um instrumento de limitação da responsabilidade das empresas do que como agente de efetiva reparação humana, social e ambiental, em razão de seus problemas de governança, desvio de finalidade e ineficiência”. De acordo com o documento, a Renova e as empresas, juntas, descumprem acordos homologados e decisões administrativas e judiciais reiteradamente.
Em uma denuncia ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, a Conectas lembrou que“providências urgentes ainda se fazem necessárias para mitigar a grave situação contínua de violação de direitos”. No final de agosto de 2022, em visita às comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, distritos de Mariana, a Conectas observou que muitas casas seguem sem serem concluídas. Em muitos casos, não foram nem mesmo iniciadas.
Não raro, muitas famílias não são nem reconhecidas como atingidas. Uma das famílias que ainda não definiu seu projeto foi a da aposentada Maria das Graças Quintão, que vive com sua filha, Mônica dos Santos, liderança que faz parte da CABF. Desde a tragédia, elas moram em um apartamento alugado pela Renova no centro de Mariana.
“Eles querem instalar um fogão pré-fabricado, mas o meu fogão não era assim, ele era de alvenaria. Em Bento, as pessoas tinham apenas fogões a lenha — alguns até mesmo feitos pelos próprios moradores”, contou Maria das Graças à revista piauí. “Eu não sei se vou dar conta de usar esse fogão que querem impor para todo mundo, que é um utensílio totalmente fora da minha realidade. Parece ser só um fogão, mas não. É minha história, minha casa, tem toda uma carga emocional.”