Uma das formas possíveis de contar a história das violações trabalhistas e de direitos humanos nas fazendas de café no Sul de Minas tem início em Tanhaçu, na Bahia. Lá, todos os anos, os chamados “gatos” intermedeiam a contratação e aliciam trabalhadores que serão enviados de forma precária aos rincões do Estado mineiro, onde trabalharão em condições insalubres na colheita de um dos principais produtos de exportação do Brasil.
Hoje, o país responde por cerca de um terço da produção global do grão. As regiões Sul e Sudoeste de Minas Gerais atendem a metade dessa demanda, tornando o Estado o maior produtor nacional de café: por ano ali são produzidas mais de 28 milhões de sacas de café, o que equivale a quase 1,7 mil toneladas. Parte dessa produção é feita às custas de violações sistemáticas, que incluem formas contemporâneas de escravidão, como servidão por dívida e condições degradantes de trabalho, identificadas em 17 fazendas que passaram por fiscalização nos últimos quatro anos.
As violações que partiram dos relatos de 37 trabalhadores resgatados dessas fazendas, corroboradas por autos de infração e relatórios de inspeção do Ministério do Trabalho, compõem a denúncia protocolada dia 21 de agosto pela Conectas e pela ADERE-MG (Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais) junto ao PCN (Ponto de Contato Nacional) do Brasil para a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para Empresas Multinacionais. O PCN é um mecanismo composto por representantes de vários órgãos públicos que se dedica a implementar e divulgar as Diretrizes da OCDE – um conjunto de normas que buscam tornar a conduta empresarial mais responsável. O PCN tem a atribuição de receber denúncias de violações por empresas multinacionais e iniciar processo de mediação para verificar o cumprimento das diretrizes.
A denúncia partiu da ADERE-MG, uma organização que articula diversos sindicatos de trabalhadores rurais do Estado. As fazendas citadas estão envolvidas na cadeia de fornecimento de produtos para as empresas multinacionais Nestlé, Jacobs Douwe Egberts, McDonald’s, Dunkin’ Donuts, Starbucks e Illy. Dentre as violações recorrentes estão a condição de trabalho análoga à escravidão, condições precárias de moradia, escassez de alimentos e falta de higiene nos alojamentos e áreas comuns, ausência de equipamentos de proteção individual, contratações e pagamentos irregulares.
“O Brasil aderiu às Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais, que estipulam claramente o dever corporativo de respeitar os direitos humanos. As empresas do setor cafeeiro – como todos os atores corporativos – devem conduzir a devida diligência para identificar, prevenir e remediar as violações de direitos humanos com as quais estão envolvidas, inclusive por meio de suas cadeias de fornecimento”, explica Caio Borges, coordenador de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas. “Ao falhar em estabelecer mecanismos robustos de rastreabilidade e monitoramento da cadeia, além de não participar em processos de reparação às vítimas, marcas de café podem se ver diante de violações dos padrões internacionais de direitos humanos sobre conduta empresarial responsável, como as Diretrizes da OCDE e os Princípios Orientadores da ONU”, completa Borges.
A denúncia ainda apresenta os esforços das empresas e produtores na construção de diretrizes de responsabilidade social, códigos de conduta e de ética, e certificação da cadeia de fornecimento do café. Apesar dessas iniciativas de responsabilidade social, as organizações afirmam que, diante das violações, as empresas compradoras ainda pecam quando o assunto é transparência e implementação de mecanismos periódicos de verificação.
Em Tanhaçu, “gatos” prometem trabalho, registro em carteira, alojamento em boas condições e pagamento devido. Convencidos pelas propostas, centenas de trabalhadores embarcam em ônibus clandestinos, todos os anos, em direção ao Sul de Minas Gerais. No destino final, multiplicam-se as reclamações sobre as falsas promessas. Em um dos casos, o trabalhador chegou a telefonar para a fazenda para a qual seria destinado e, diante da confirmação das condições, aceitou a proposta.
A situação nas fazendas contrasta com a promessa. Na maioria dos alojamentos não há água encanada e, em alguns casos, sequer havia camas ou vasos sanitários. Nos relatos, os trabalhadores descrevem a situação como se estivessem “morando em um curral”, sem qualquer condição de higiene, em estruturas precárias que não dão conta de atender necessidades básicas de sobrevivência digna.
Em uma das fazendas onde fiscais do Ministério do Trabalho resgataram pessoas mantidas em condições análogas à escravidão, a fome era parte da rotina. Com o fim do estoque de alimentos e a falta de pagamento, os trabalhadores passaram a se alimentar do arroz que havia sobrado e dos mamões colhidos na fazenda.
Rotinas exaustivas de trabalho também fazem parte dos relatos e dos autos de infração lavrados por fiscais. As jornadas se iniciam às 4h da madrugada em uma longa caminhada até o local da colheita e se encerram tarde da noite. Dores nas mãos e na coluna, e o cansaço são recorrentes e permanentes. Em algumas fazendas, não havia o fornecimento básico de equipamentos de proteção individual, como luvas e óculos, potencializando os riscos à saúde dos trabalhadores, tanto pela mecânica da lida na colheita como pela exposição prolongada a pesticidas.
Cada trabalhador é remunerado de acordo com o número de sacas de café colhidas. O valor combinado nem sempre é pago integralmente e fraudes nas contagens de sacas são frequentes e perceptíveis. Além dessas violações, há casos registrados de retenção da carteira de trabalho e da utilização de mão-de-obra de menores de 18 e 16 anos.
A denúncia apresentada à OCDE apresenta a tipologia dos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, que classificam os graus de envolvimento de uma empresa com violações de direitos humanos a partir de três categorias: causar, contribuir, e estar diretamente relacionada. O mais alto grau de responsabilidade da empresa se dá quando esta “causa” uma violação. Em seguida, estão as relações de “contribuição”. Por fim, a “relação direta” representa o menor grau de responsabilidade entre estas três formas de envolvimento.
A Illy, Dunkin’ Donuts e McDonald’s apresentam relação direta com as violações a partir do envolvimento comercial com empresas que praticam tais violações ligadas a produtos, operações ou serviços. As três multinacionais adquirem café por meio da distribuidora canadense Mother Parkers que, por sua vez, compra o café da cooperativa Cooxupé. A cadeia produtiva segue: a Cooxupé compra café de outra cooperativa, a Cocatrel, que mantém relações comerciais com um produtor cujo nome está na lista suja do trabalho escravo.
Procuradas pela Conectas, o McDonald’s, a Illy e Dunkin’ Donuts não responderam aos questionamentos da organização sobre a transparência de suas relações com empresas violadoras de direitos e sobre a permanência de fazendas citadas nas denúncias em seu rol de fornecedores.
No caso da Nestlé e Jacob Douwe Egberts, estabeleceu-se uma relação de contribuição. O Starbucks ainda acumula a relação direta, além da contribuição. A Nestlé é signatária do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e informou que, atualmente, 85% das reservas de café arábica brasileiro são adquiridos por empresas responsáveis, que têm a origem certificada por entidades independentes ou programas de sustentabilidade da Nestlé.
Ainda assim, em 2016, a organização holandesa Danwatch identificou que a Nestlé comprou café de fazendas nas quais o grão era colhido sob condições análogas à escravidão. Procurada pela Conectas, a Nestlé informou que “não tolera violações dos direitos trabalhistas, o que inclui o trabalho forçado e/ou análogo ao escravo”, mas não respondeu aos questionamentos específicos sobre a transparência de sua cadeia de produção e sobre a relação com fazendas violadoras.
Na mesma época, a Danwatch também mostrou que a Jacob Douwe Egberts adquiriu, por meio de intermediários, café colhido por trabalhadores em condições análogas à escravidão. A multinacional foi contactada pela Conectas e disse que trabalha “ativamente com governos, organizações não-governamentais, fornecedores, cooperativas de agricultores e toda a cadeia de fornecimento de café para melhorar as condições de trabalho dos cafeicultores no Brasil e no Mundo”.
A Starbucks, por sua vez, também admitiu ter adquirido café da cooperativa Cooxupé, mas demonstrou que o café não havia sido colhido em fazendas violadoras. Neste ano, porém, 18 trabalhadores foram resgatados de uma das fazendas certificadas pela Starbucks, onde eram expostos a condições degradantes de trabalho.