O trabalho análogo ao escravo em lavouras de café não é algo do passado. Mesmo com certificações e auditorias, a violação de direitos de trabalhadores rurais na cafeicultura persiste no Brasil. A constatação é do estudo “Pragas na lavoura”, elaborado pela Conectas em parceria com a organização holandesa SOMO. O lançamento do relatório no Brasil é nesta sexta-feira (26), no âmbito do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (28 de janeiro). Clique aqui para acessar o relatório completo.
O levantamento revela a persistência da escravidão moderna e a necessidade de medidas significativas para coibir o trabalho forçado nas cadeias de abastecimento de café. Segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, de 1996 a 2023 foram encontrados 3.700 trabalhadores em condições análogas à escravidão em lavouras de café em todo o país. Em outubro de 2023, a “Lista Suja do trabalho escravo” continha 39 produtores de café.
De acordo com o relatório, há evidências da fragilidade da autorregulação corporativa, com falhas em auditorias externas e nos esquemas de certificação, que não identificam de forma consistente e eficaz os riscos para os direitos humanos e a prevenção de danos. Pelo contrário: acabam por fornecer falsas garantias de conformidade, ao mesmo tempo que inibem a investigação e as intervenções necessárias.
Dezenas de violações recorrentes estão documentadas no estudo, como a ausência de contratos de trabalho, irregularidades nos pagamentos, instalações inadequadas para higiene, não fornecimento de água potável e de refeições. “Não tinha geladeira, televisão, armário, mesa. Nós mesmos tivemos que ‘construir’ uma cama, e fazia muito frio na casa”, cita um dos resgatados em uma fazenda. Quase como via de regra, os relatos mencionam a falta de fornecimento de equipamento de proteção individual por parte do empregador, item essencial e obrigatório para o desempenho da atividade.
Em agosto de 2022, por exemplo, 20 trabalhadores — incluindo uma menina de 15 anos e três rapazes com menos de 18 — foram resgatados de uma fazenda da cadeia de fornecimento da Nestlé, em que não recebiam os salários regularmente e eram obrigados a utilizar itens próprios de proteção individual. “A água era ruim, mas tínhamos que beber. Era uma água amarela, suja”, disse uma das vítimas. Absurdamente, a fazenda tinha a certificação internacional de sustentabilidade Rainforest Alliance.
“É preciso implementar uma legislação que aborde o trabalho forçado nas cadeias de abastecimento e que exija a diligência em alinhamento com as Diretrizes da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e outras normas internacionais”, avalia Júlia Mello Neiva, diretora de fortalecimento do movimento de direitos humanos da Conectas.
“Uma lei que proíba a comercialização de produtos fabricados com trabalho forçado nos mercados, por exemplo, é um dos caminhos possíveis apontados pelo relatório, assim como maiores garantias de reparação para os trabalhadores afetados e a divulgação de todos os envolvidos no processo de produção”, comenta Neiva.