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Trabalhadores em situação vulnerável expõem a precarização dos direitos trabalhistas no Brasil

Organização Internacional do Trabalho aponta que desaceleração da economia pode forçar aumento de aceitação de empregos degradantes, intensificando desigualdade; entenda o que é precarização do trabalho

Ginásio em Bento Gonçalves (RS) vira alojando para trabalhadores resgatados em vinícolas. Foto: Divulgação Ginásio em Bento Gonçalves (RS) vira alojando para trabalhadores resgatados em vinícolas. Foto: Divulgação

“A gente foi em busca de um sonho, de conquistar nosso próprio salário e ajudar no sustento da família, mas quando chegou lá era um pesadelo”, relatou, ao podcast ‘O Assunto’, um trabalhador que foi resgatado de uma vinícola em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Ele faz parte do grupo de 207 homens que saíram da Bahia para colher uvas, com a promessa de receber alojamento, comida e até 4 mil reais de salário, mas acabaram em situação análoga à escravidão. A promessa foi feita pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, que prestava serviços para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. 

De acordo com os depoimentos, os trabalhadores recebiam comida estragada e eram obrigados a contrair dívidas exorbitantes nos estabelecimentos próximos do alojamento, onde eram “tratados como bicho”. Espancados com cabos de vassoura, mordidas e spray de pimenta, eles eram acordados com choques elétricos por volta das 4 da manhã para trabalhar até as 9 da noite, sem descanso. 

Em 22 de fevereiro, o Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e as polícias Federal  e Rodoviária Federal realizaram uma operação, na qual constataram as condições degradantes de trabalho. 

A situação dos trabalhadores de Bento Gonçalves vai ao encontro das observações feitas pelo novo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), lançado no início deste ano. De acordo com o documento, a atual desaceleração econômica mundial vai forçar cada vez mais trabalhadores e trabalhadoras a aceitar empregos precários, de baixa remuneração e sem proteção social, reforçando ainda mais as desigualdades expostas pela pandemia. Precarização do trabalho é  uma série de ações que fere os direitos e a dignidade da pessoa trabalhadora,  que pode incluir, entre outras coisas, jornadas longas, remuneração indevida ou ausente, instabilidade e falta de proteção social e laboral. 

A OIT estima que o crescimento no número de empregos globais em 2023 será de apenas 1%, menos da metade do que foi em 2022. Com isso, o desemprego global deve atingir cerca de 208 milhões de pessoas, uma taxa de 5,8%. Além disso, com o aumento dos preços em descompasso com a renda nominal do trabalho, mais pessoas serão empurradas para a pobreza, favorecendo o aumento de pessoas que se submetem a situações de trabalho degradante por necessidade. 

“A necessidade de mais trabalho decente e justiça social é clara e urgente. Mas se queremos enfrentar estes múltiplos desafios, temos de trabalhar em conjunto na criação de um novo contrato social global”, afirmou Gilbert F. Houngbo, diretor-geral da OIT. 

Retomando a dignidade

Ações do governo atual já buscam lidar com a precarização crescente do trabalho no Brasil. Em janeiro, o presidente Lula anunciou a criação de um grupo de trabalho responsável por eliminar as assimetrias nas relações entre empregados e empregadores. A ideia é que as medidas elaboradas sejam enviadas para debate no Congresso Nacional. A ação se alinha à promessa de campanha de criar uma nova legislação trabalhista, com “especial atenção” a trabalhadores “mediados por aplicativos e plataformas”.

Mas muitas demandas como esta terão que ser adotadas para amenizar o retrocesso causado pelo governo de Jair Bolsonaro, o qual, em seu primeiro dia de mandato, em 2019, extinguiu o Ministério do Trabalho, que passou a ser uma secretaria subordinada ao Ministério da Economia, restituindo-o em 2021. Junto disso, os mecanismos de participação da sociedade civil, bem como as estruturas de fiscalização, foram continuamente sucateadas. 

“Com isso [a extinção do ministério] a pauta trabalhista ficou fora do núcleo de poder do executivo por quase dois anos, sem ter um órgão central para elaborar a política sistematizada de emprego e responder às demandas dos trabalhadores e trabalhadoras cada vez mais precarizados”, expôs Marina Novaes, da Business & Human Rights Resource Centre (BHRRC), na live de lançamento do documento “Desmontes e retrocessos no sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil”, elaborado pela Conectas, BHRRC (Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos), ADERE/MG (Articulação dos Empregados (as) Rurais de Minas Gerais), Oxfam Brasil e CONTAR (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais).

Além disso, de acordo com Novaes, o governo Bolsonaro buscou reestruturar os órgãos de proteção, extinguindo conselhos e comissões que integravam a política nacional de participação social. 

Como destacou o relatório, o efetivo da inspeção do trabalho também vem diminuindo cada vez mais. “Nos últimos dez anos, o número de auditores fiscais passou de 2.935 fiscais em 2010 para apenas 2.050 em 202013 — o que não é suficiente para alcançar todas as regiões do país, especialmente as mais remotas — e tem dificultado o monitoramento e o cumprimento das normas trabalhistas por parte do Estado”, diz o documento, lembrando que o governo impediu ainda que a fiscalização conseguisse recursos por outros meios, ao impedir a destinação de verbas decorrentes de multas e indenizações por danos morais coletivos por parte Ministério Público do Trabalho (MPT).

A situação ainda é agravada pela incapacidade de responsabilizar os infratores pelos crimes e de garantir uma reparação adequada às vítimas. Como destaca o documento, das 3.450 operações de fiscalização de trabalho escravo realizadas entre 2008 e 2019, somente 2.679 réus foram denunciados pelo crime e, destes, apenas 112 experimentaram condenação definitiva, o que corresponde a 4,2% de todos os acusados e 6,3% do número de pessoas levadas a julgamento. 

A transparência, que se dá por meio da divulgação da lista de infratores, a “lista suja”, é tida como uma estratégia bem sucedida de combate ao trabalho escravo no Brasil, apesar do governo não exigir das empresas a divulgação pública de dados e informações de sua cadeia produtiva, o que dificulta o controle e a responsabilização de todos os envolvidos com a prática do trabalho escravo, mas indicando, ainda assim, um importante caminho de atuação.

“Vale dizer que os nossos esforços para que não exista nenhum retrocesso civilizatório são importantes, não podemos aceitar que empresas e governos nos impeçam de escutar, participar, opinar, decidir e protestar”, apontou Marina Novaes. “E que a proteção das brasileiras e dos brasileiros das violações de direitos humanos, produto da operação de empresas, é um termo urgente para a construção de um país justo e sustentável.” 

Conectas, OECD Watch e FIDH (International Federation of Human Rights também avaliaram as políticas e práticas do Brasil nessa área no contexto em que o país tenta ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A pesquisa“Direitos trabalhistas e proteção social no Brasil – lacunas de governança” conduzida pelas organizações apontou que nos últimos anos a flexibilização de leis trabalhistas no país causou a precarização de muitos trabalhadores. O texto diz, por exemplo, que a fruticultura brasileira, “é um setor permeado por péssimas condições de trabalho. Grande parte das mulheres e homens que trabalham na cadeia de produção dessas frutas vivem em situação de grande vulnerabilidade, sem contratos de trabalho que durem mais de 6 meses e sem salários dignos que consigam prover uma vida decente para si e para suas famílias”. 

Racismo e precarização do trabalho

Existe ainda um componente racial central nesta discussão. No caso das vinícolas do RS, por exemplo,dos 207 trabalhadores resgatados, 95% se declaram negros (64% pardos e 31%, pretos), revela dados do governo federal, divulgados pelo UOL. “A precarização do trabalho é mais uma consequência cruel do nosso passado escravocrata, que se atualiza com o tempo. Ofertar trabalho digno para a população é também uma forma de enfrentar o racismo estrutural e sistêmico”, afirma Júlia Neiva, diretora de Fortalecimento do Movimento de Direitos Humanos e coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas.

Ela acrescenta que é hora da sociedade brasileira fazer um pacto contra todas as formas de precarização do trabalho, inclusive o trabalho análogo ao escravo. “Esse pacto deve ser amplo e envolver a responsabilização das empresas e o compromisso dos governos. É fato que vivemos uma transformação socioeconômica. Algumas profissões que existiam no passado passam a não fazer mais sentido agora, enquanto isso, surgem novas ocupações e novas relações trabalhistas, na cidade e no campo. Essas mudanças, contudo, não podem significar precarização e perda de direitos. Pelo contrário, a legislação deve avançar e ser definitivamente cumprida. Não podemos aceitar, por exemplo, empresas modernas e tecnológicas estabelecendo relações arcaicas de trabalho”, afirma Neiva. 


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