A divulgação, no dia 9/12, do relatório do Senado americano sobre o uso da tortura pela CIA (a Agência de Inteligência estadunidense) reacendeu o debate sobre as ilegalidades cometidas pelo governo norte-americano no curso da chamada Guerra ao Terror. Passada a consternação, o maior desafio segue sendo o de buscar a responsabilização das autoridades envolvidas e a reparação às vítimas.
Na segunda-feira, dia 22/12, duas organizações de direitos humanos sediadas nos Estados Unidos, a ACLU (sigla em inglês para União Americana das Liberdades Civis) e a Human Rights Watch, enviaram novo pedido ao Procurador Geral americano Eric Holder demandando que seja apontado um promotor especial para lidar com as violações contra prisioneiros sob custódia da CIA desde os ataques de 11 de setembro de 2001.
Paralelamente, dados os muitos obstáculos políticos para judicializar os casos nos EUA até o momento, outra alternativa tem sido a de denunciá-los em fóruns internacionais e cortes estrangeiras – o que é possível por conta da natureza universal dos crimes de guerra e contra a humanidade, como é a tortura. Casos já foram abertos contra altas autoridades do governo de George W. Bush na Espanha, França e Alemanha. No último dia 17 foi aberta nova ação na Alemanha contra o ex-chefe da CIA George Tenet, o ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld e outros membros da administração.
O papel do Brasil
Além de receber casos em suas cortes, outros países podem ser mais ativos na luta contra a tortura e outros crimes cometidos no contexto do pós-11/9. O Brasil, por exemplo, tem algumas oportunidades de contribuir positivamente em um futuro próximo: em janeiro, ocorre a visita oficial ao País do vice-presidente americano Joe Biden e o tema pode ser incluído na pauta bilateral. Nesta ocasião, o governo brasileiro pode ainda ser parte dos esforços de fechamento do centro de detenção de Guantánamo, ao afirmar publicamente sua disposição em receber pessoas detidas irregularmente no local – gesto humanitário adotado pelo Uruguai no início de dezembro.
“Em tempos democráticos, um Estado que distorce as garantias do direito internacional para fins de segurança nacional traz mais insegurança ao mundo. E neste sentido, o Brasil não pode ser conivente”, diz Camila Asano, coordenadora do Programa de Política Externa da Conectas.
O Brasil pode fazer ainda mais: um exemplo é se aproveitar da passagem dos Estados Unidos pela Revisão Periódica Universal da ONU, em maio de 2015, e fazer recomendações concretas para que o país abra uma investigação independente sobre os abusos cometidos pela CIA.
Entrevista com Jamil Dakwar, Diretor do Programa de Direitos Humanos da ACLU
Conectas – Qual a influência da sociedade civil na decisão do Senado americano de investigar e divulgar a tortura durante a chamada “Guerra ao Terror”?
Jamil Dakwar – Teve uma influência enorme exigindo que fossem prestadas contas sobre a tortura. A ACLU integrou uma coalizão de organizações de defesa dos direitos humanos que incidiu junto a membros do Comitê de Inteligência do Senado para que o tema fosse investigado e suas conclusões, divulgadas. Como parte desse grupo, incentivamos nossos 500 mil integrantes de todo o país a contatar os membros do Comitê exigindo que eles divulgassem o relatório. Incentivamos também nossos membros a escrever para o presidente pedindo que ele não deixasse a CIA comandar o processo, mantendo os resultados em segredo, mas que tornasse o processo o mais transparente e imparcial possível.
O que vocês e outras entidades de direitos humanos planejam fazer daqui em diante?
Após a divulgação do relatório, os esforços da ACLU para uma maior prestação de contas são de advocacy, a fim de que seja nomeado um promotor especial para conduzir uma investigação completa e independente sobre os integrantes da administração de George W. Bush que participaram do programa de tortura. Pressionamos por uma reforma significativa da CIA, proibindo-a de operar qualquer centro de detenção e garantindo que a agência fique sujeita às mesmas regras de interrogatório que regem os outros militares. Queremos o reconhecimento e pedidos de desculpas para as vítimas de tortura, além de indenização e tratamentos para reabilitação previstos pelas leis internacionais de direitos humanos. Queremos também que sejam reconhecidos os integrantes do governo que se opuseram à tortura e, finalmente, a divulgação de todas as 6,7 mil páginas do relatório.
O presidente Barack Obama disse repetidas vezes que não pretende abrir investigações sobre o uso da tortura pela CIA e que o país “deveria olhar para frente e não para trás”. O que este perdão tácito significa para vocês?
A ACLU acredita que a publicação do relatório do Senado deve ser o começo e não o fim de qualquer processo. O relatório deveria impulsionar o presidente Obama e o Congresso a agir, garantindo que a tortura nunca mais seja utilizada. Preferimos processos judiciais aos perdões antecipados e exigimos que o Procurador Geral aponte um promotor especial para responsabilizar arquitetos e operadores por terem desenhado, implementado e acobertado o programa de tortura.
Pressão internacional pode fazer diferença para coibir o governo americano de cometer violações de direitos humanos?
Sim, acreditamos que pressão do exterior pode fazer a diferença na forma como o governo dos EUA lida com violações no futuro. O país se orgulha de ser um defensor dos direitos humanos e é crucial que o governo Obama e o Congresso admitam o quanto a tortura manchou essa noção. Desde 2004, levamos esse assunto para a comunidade internacional por meio de fóruns diversos, como o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o Comitê da ONU contra a Tortura, o Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial, a Revisão Periódica Universal e Relatores Especiais da ONU.