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27/02/2016

Tortura e maus-tratos

Segundo capítulo | Violação Continuada :: Dois anos da crise em Pedrinhas



Pedrinhas foi palco de brutais episódios de violência no decorrer de seus 50 anos – entre eles, uma rebelião em novembro de 2010 que resultou em 18 presos mortos, muitos deles decapitados. O caso ficou conhecido como um dos piores já registrados no sistema prisional brasileiro.

Entre outubro e dezembro de 2013, Pedrinhas ganhou novamente as manchetes da imprensa nacional e internacional após uma série de rebeliões que deixou 22 mortos. Desta vez, as cenas de cabeças decepadas e corpos perfurados correram o mundo.

Entre janeiro de 2013 e início de 2014 foram registradas 63 mortes. Esta nova escalada de violência resultou na apresentação do caso pela SMDH e pela OAB-MA à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A medida cautelar expedida pela CIDH obriga o Estado brasileiro a assumir imediatamente “todas as medidas que sejam necessárias para proteger eficazmente a vida e a integridade pessoal de todas as pessoas privadas de liberdade no complexo”.

Em resposta à OEA, o Ministério da Justiça e o Executivo maranhense, responsável pelo complexo, anunciaram a criação do Plano de Ação de Pacificação das Prisões de São Luís.

Dois anos depois desse ponto de inflexão na história de Pedrinhas, é possível dizer que os assassinatos diminuíram, mas o quadro de tortura e maus-tratos generalizado se mantém. Se as ações e omissões do Estado antes contribuíam com a violência generalizada entre as facções rivais, hoje esse mesmo Estado é o principal artífice dessa violência perpetrada diariamente por seus representantes – diretores de unidades e agentes de segurança públicos e privados.

Após os episódios de 2013, o complexo ficou durante meses sob controle direto da Força Nacional e da Polícia Militar. Há inúmeros relatos de torturas e violência por parte dos agentes destas corporações.

Servidores de segurança terceirizados, muitas vezes em condições precárias de contratação, patrulham os pavilhões e corredores e reagem com violência a qualquer queixa dos internos. Muitos deles cobrem o rosto com uma espécie de touca ninja, contrariando portaria estadual (563/2015), que proíbe máscaras ou outros acessórios que dificultem a identificação do agente. Na cintura, levam frascos de spray de pimenta e, no colo, armas com balas de borracha.

Em um cenário de tensão e opressão constantes, esses funcionários são apontados pelos presos como principais artífices de maus-tratos e tortura, ao lado dos agentes do GEOP (Grupo de Escolta e Operações Penitenciárias).

Segundo relatos colhidos pelas organizações em todas as visitas realizadas ao longo dos últimos dois anos, armas menos letais são usadas cotidianamente para reprimir os internos, ferindo, de uma só vez, os princípios da legalidade, necessidade, razoabilidade e proporcionalidade da Lei 13.060/2014, que regula o uso de armas menos letais pelas forças de segurança.

Alguns diretores de unidades confirmam o uso de bala de borracha e do spray de pimenta alegando necessidade de garantir a segurança da unidade e manter a disciplina dos presos. No entanto, além de o uso de tais instrumentos ser desproporcional, uma vez que os presos estão confinados nas celas, os relatos apontam para uma utilização em ocasiões rotineiras, sem que haja motins ou situações de grave ameaça à ordem.

“Eles jogam bomba aqui dentro da cela. Aí a gente fica aqui, pedindo socorro. Quanto mais a gente grita, mais eles jogam”

Relato de preso do Centro de Detenção Provisória.

Submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, é considerado tortura pela Lei Federal 9.455/1997 e pela Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, criada em 1984 e ratificada pelo Brasil em 1991.

A cotidianidade do uso da força contra os internos também foi atestada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que realizou uma missão ao complexo em outubro de 2015. Em relatório publicado na sequência, os peritos afirmaram que “as pessoas privadas de liberdade ainda são submetidas, conforme relatado anteriormente, a situações de extrema violência e ilegalidade por parte dos agentes públicos de segurança ou agentes privados exercendo funções do Estado”.

“Diferente de antigamente, as torturas realizadas hoje no interior das prisões não deixam tantas marcas como antes. Os ossos quebrados e marcas de espancamento foram substituídos pelo uso do spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo em cela fechada. Presos são levados para as chamadas ‘celas de reflexão’ superlotadas onde ficam por dezenas de dias sem direito a banho de sol ou visita”, ressalta Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global.

A falta de procedimentos internos para o registro de ocorrências aprofunda a dificuldade de responsabilizar agentes e diretores pelas violações. A ausência de tais regulamentos fere os Princípios Básicos sobre a utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei da ONU, criados em 1990. A normativa internacional aponta que “os governos e entidades responsáveis pela aplicação da lei deverão adotar e implementar normas e regulamentos sobre o uso da força e de armas de fogo pelos responsáveis pela aplicação da lei. Na elaboração de tais normas e regulamentos, os governos e entidades responsáveis pela aplicação da lei devem examinar constante e minuciosamente as questões de natureza ética associadas ao uso da força e de armas de fogo”.

Neste contexto, é comum, por exemplo, encontrar presos nas celas de reflexão que não tenham passado antes, como manda a lei, por um processo administrativo que lhes garanta direito à defesa e ao contraditório. Nesta mais recente inspeção, realizada em novembro de 2015, as organizações testemunharam essa situação na cela H6 da Cadet (Casa de Detenção), até pouco tempo conhecida como “cela de reflexão”. O ‘castigo’, como é chamado por funcionários e detentos, abrigava 19 internos no momento da visita.

“A gente está pedindo [à diretoria do presídio] para tirar, ao menos, cinco ou seis pessoas daqui hoje, porque não tem nem espaço para a gente dormir”, afirmou um dos detentos que dizia estar há 11 dias na H6. O espaço já foi apontado em relatórios da sociedade civil como um local totalmente inadequado para a permanência de presos. Mesmo assim, continua funcionando cotidianamente como castigo. A única mudança foi cosmética: a inscrição “Cela de Reflexão” foi apagada de sua parede externa.

Os motivos que justificariam a aplicação das sanções não são claros para os presos. De acordo com eles, as punições se dão de forma arbitrária diante de qualquer desentendimento, sem possibilidade de defesa. A sanção inicial de dez dias é renovada de modo que alguns chegam a permanecer 30 dias no local, contrariando as “Regras de Mandela”, que proíbem o isolamento prologando por mais de 15 dias consecutivos e em cela escura.

As péssimas condições dos alojamentos dos presos ferem diversas normativas nacionais e internacionais e podem ser consideradas como maus-tratos, tratamento degradante e até mesmo tortura, de acordo com a Lei de Execução Penal, com resolução do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária) e com as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros.

A própria superlotação das unidades foi apontada pelo relator especial da ONU para a tortura, Juan Méndez, como fator crucial para o agravamento da situação de maus-tratos dentro das prisões brasileiras. Após denúncia realizada pela Conectas, Justiça Global e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos nas Nações Unidas, em março de 2014, o perito veio ao Brasil para inspecionar o grau de violência em estabelecimentos prisionais. Para o relator, que esteve em Pedrinhas, a tortura nas penitenciárias brasileiras é generalizada e sistemática.

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