Voltar
-
05/09/2014

Tortura é crime

Projeto de Lei que cria órgão de prevenção e combate é apresentado em SP



São Paulo, estado que abriga 35% da população carcerária brasileira, finalmente deu o primeiro passo para a criação de um Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Um projeto de lei aos moldes do texto sancionado pelo governo federal em agosto de 2013 foi protocolado ontem (4/9) pelo deputado Adriano Diogo (PT).

A iniciativa foi anunciada publicamente, horas depois, na abertura de ato sobre retomada das análises das ossadas de Perus. Foi recebido com aplausos de familiares de desaparecidos políticos.

Se aprovado pelos deputados e sancionado pelo governo estadual, a norma criará um novo órgão, formado por especialistas com agenda independente e acesso livre a qualquer local de privação de liberdade. A partir das visitas, os membros do mecanismo poderão solicitar a instauração de inquéritos, fazer perícias, elaborar relatórios, sistematizar dados e sugerir políticas públicas.

A minuta do texto fora apresentada aos deputados um dia antes, durante a audiência temática ‘Tortura: Passado, presente e futuro’, na Comissão Estadual da Verdade. O projeto, elaborado por entidades como a Conectas, a Pastoral Carcerária, o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, o Conselho Regional de Psicologia, a ACAT e o Instituto Práxisaguardava apreciação do governador Geraldo Alckmin há três anos.

“Hoje a democracia ganhou e o país saiu engrandecido do ponto de vista do processo civilizatório”, afirmou o deputado ao assinar o documento. “A tortura não é um método de interrogatório. A tortura é um meio de humilhação e de destruição do ser humano.”

O projeto foi elaborado à luz da experiência positiva do Rio de Janeiro. Segundo Renata Lira, integrante do Mecanismo fluminense, a criação do órgão em 2010 permitiu a compilação de dados e a criação de canais de diálogo com entidades públicas para combater a prática de tortura. Paraíba, Alagoas, Pernambuco e Espírito Santo já aprovaram leis similares, mas seus mecanismos ainda não estão em funcionamento.

“O Rio de Janeiro tem cerca de 20% da população carcerária de São Paulo. Se para nós tem sido um grande avanço ter este mecanismo, imagine o quanto isso significará para São Paulo, que tem um desafio muito maior”, afirmou Lira.

Mecanismo nacional

O Brasil já possui um Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado a partir da lei 12.847, sancionada pelo governo federal em agosto de 2013. Sua adoção responde a um compromisso firmado em 2007 pelo País junto ao SPT (Subcomitê de Prevenção à Tortura das Nações Unidas). Seu êxito depende, entre outros, da multiplicação do modelo nos estados, garantindo a cobertura de todo o sistema prisional – o quarto maior do mundo, em número de detentos.

Raul Nin, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, lembrou que a tortura é uma prática rechaçada pela Constituição Federal e por diversos parâmetros internacionais de direitos humanos.

Adotada em 1984 e ratificada pelo Brasil em 1989, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes é a principal norma internacional sobre o tema. O País também firmou o Protocolo Facultativo à Convenção em 2007, que estabelecia o prazo de um ano para que os países adotassem mecanismos nacionais de prevenção.

No âmbito nacional, há a lei 9.455, de 1997, que institui como crime de tortura “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental” a fim de obter informações, provocar ações de natureza criminosa, em razão de discriminação racial ou religiosa e, ainda, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

“Nós, da Defensoria Pública entendemos que o governo do estado de São Paulo tem o dever de criar este mecanismo e colaborar com a prevenção e combate a este tipo de prática”, afirmou Nin. Sua fala foi endossada por José de Jesus, da Pastoral Carcerária. “Seis estados já aprovaram leis similares, mas São Paulo não, apesar de possuir a maior população carcerária do País.”

Passado e presente

Durante a audiência na Comissão da Verdade, realizada no dia 3/9, às vésperas da apresentação do PL, os participantes concordaram que, apesar dos avanços na lei e nos compromissos internacionais, a prática de tortura continua acontecendo de forma sistemática no Brasil, sobretudo nos presídios.

A tortura é um crime de oportunidade e as condições estão dadas para ele continue acontecendo”, disse Lucia Nader, diretora da Conectas. Para ela, fatores como a aceitação da prática pela sociedade, a sua invisibilidade e a falta de confiança nas instituições perpetuam a tortura e dificultam as denúncias. “A tortura não é apenas uma herança de um passado de violações de Direitos Humanos no Brasil. Ela é aceita e praticada diariamente no Brasil e isso é vergonhoso”, concluiu.

Para Maria Amélia Teles, membro da Comissão Estadual da Verdade, a construção histórica do Brasil incorporou a prática da tortura, que se tornou banalizada e institucionalizada. “O Brasil foi um exportador de métodos de tortura. Muitos chilenos ouviram a expressão ‘pau-de-arara’ pela primeira vez dos torturadores brasileiros”, afirmou Amelinha.

No final dos anos 1970, movimentos sociais e organizações da sociedade civil denunciaram torturas realizadas na ditadura, registraram as mazelas encontras nos sistemas prisionais e protestaram contra a continuidade da violência nos presídios, lembrou Gorete Marques, do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

“Isso demonstrou a importância da visita de organizações independentes a estas unidades como forma de combater e prevenir a prática da tortura. Este momento marcou a transição democrática”, concluiu Marques.

Leia aqui a íntegra do documento

Confira a videorreportagem:

Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas