Em decisão histórica, nesta terça-feira (9), a 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) concedeu um Habeas Corpus coletivo proibindo que a Justiça de São Paulo mantenha em regime fechado pessoas condenadas pelo chamado “tráfico privilegiado”, ou seja, agentes primários, com bons antecedentes e que não integram organizações criminosas.
No entendimento, por unanimidade, dos ministros, o Tribunal de Justiça paulista vinha descumprindo determinação do próprio STJ e do Supremo Tribunal Federal, que, em 2016, reconheceram o “tráfico privilegiado” como crime comum, diferenciando a modalidade de crimes hediondos, como o tráfico de drogas, para o qual está previsto pena máxima sem direito à anistia, indulto ou fiança.
Na ocasião do julgamento, o ministro Ricardo Lewandowski destacou a estimativa de que em torno de 80 mil pessoas, em especial mulheres, estariam presas naquele momento pela modalidade do chamado “tráfico privilegiado”.
Segundo o advogado da Conectas, Henrique Apolinario, a estimativa feita pelo ministro chamou a atenção tanto para o potencial de desencarceramento da decisão quanto para a falta de dados precisos sobre quantas pessoas respondem atualmente por tráfico privilegiado no país.
“A decisão é paradigmática porque resolve um problema histórico que o TJ de São Paulo e os demais tribunais estaduais têm de descumprirem a lei, a Constituição e o que determinam os tribunais superiores. É a correção de uma distorção”, afirma Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto do Direito de Defesa).
Impacto direto
Segundo dados da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) de São Paulo, em março deste ano, havia 1.018 homens e 82 mulheres cumprindo a pena mínima por tráfico em regime fechado. Com a decisão, estas pessoas podem ser imediatamente transferidas para o regime aberto.
“A insistente desconsideração das diretrizes normativas derivadas das cortes superiores, por parte das demais instâncias, produz um desgaste permanente da função jurisdicional, com anulação e/ou repetição de atos, e implica inevitável lesão financeira ao erário, bem como gera insegurança jurídica e clara ausência de isonomia na aplicação da lei aos jurisdicionados”, ressaltou o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do caso.
Para embasar seu voto, Schietti destacou a pesquisa “Prisão a Qualquer Custo”, produzida pela Conectas em parceria com o IDDD, cujos dados apontam que a Justiça paulista continua aplicando tratamento desproporcional ao tráfico privilegiado, em comparação a outros delitos sem violência de igual pena.
De acordo com o estudo, 69% das pessoas acusadas por tráfico, em 159 audiências de custódia acompanhadas pelas entidades, foram presas provisoriamente. Na primeira instância, 40 de 64 pessoas sentenciadas por tráfico privilegiado foram para o regime fechado. Já na segunda instância, 66% dos recursos pedindo a transferência para regime aberto foram negados.
“Os números retratam essa falta de zelo por princípios sempre em desfavor do cidadão. Muitas vezes os defensores e defensorias públicas são acusados de levarem questões aos tribunais superiores mais do que deveriam. Se a lei fosse estritamente aplicada, não teríamos esse volume de prisões, sobretudo, de jovens, negros, de baixa escolaridade e moradores das periferias, que são os alvos da seletividade penal”, conclui Leonardo.