Em maio do ano passado, o então chanceler brasileiro, Antônio Patriota, foi assertivo sobre um ponto frequentemente obscuro quando se trata da Política Externa do Brasil: a transparência e a participação social – “Quero reafirmar nosso compromisso de contato permanente com a sociedade civil, as ONGs.” O ministro não estava em reunião privada, nem numa conversa de corredor. Patriota participava naquele momento de uma sabatina no Senado, transmitida ao vivo pela televisão.
Confrontado por mais de 30 perguntas de cidadãos brasileiros, recolhidas pela Conectas durante uma campanha que durou quatro intensos dias na internet e que foram enviadas ao todos senadores da Comissão de Relações Exteriores, o ministro encontrou naquela ocasião a oportunidade ideal para tocar num assunto que vinha sendo relegado a um segundo plano há muito tempo pelo Brasil. A posição de Patriota revelava que, apesar da dificuldade, há uma brecha importante para que a política externa brasileira seja cada vez mais vista como uma política pública. A experiência de aproximar cidadãos da sabatina no Senado – batizada pela Conectas de “Ministro, Eu #QueroSaber” – se repetiria nove meses depois, em fevereiro deste ano, com o atual chanceler, Luiz Alberto Figueiredo.
“A campanha #QueroSaber apenas ilustra algo maior: a sociedade não quer ser mera expectadora da definição da política externa de seu País. Isso é especialmente verdadeiro quando envolve graves questões de direitos humanos sobre as quais o governo é omisso ou se posiciona premido por interesses divergentes dos valores defendidos pela sociedade”, disse Camila Asano, coordenadora de Política Externa da Conectas.
Transparência: Livro Branco
Um dos pilares desta abertura é a confecção do chamado “Livro Branco da Política Externa Brasileira”. Em artigo publicado em fevereiro deste ano, no Le Monde Diplomatique, Camila e Laura Waisbich, ambas do Programa de Política Externa e Direitos Humanos Conectas, dizem que a adoção do Livro Branco pode ser “um dos passos mais ousados na direção da transparência da política externa brasileira”.
Mas não é o bastante. “A ideia foi lançada. Agora vem a parte difícil, que é trabalhar com a sociedade civil e elaborar um documento que, de fato, tenha sentido”, disse Camila.
No último 17 de fevereiro, o Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa (CBDHPE), do qual Conectas é secretária-executiva e membro-fundador, enviou uma série de propostas claras ao ministro Figueiredo sobre como deveria ser o processo de elaboração do Livro Branco, dizendo claramente quais pontos não deveriam ficar de fora deste importante documento.
A realização de audiências públicas no Congresso Nacional é vista como chave para uma transparência efetiva no processo de confecção do Livro. Além disso, as entidade que compõem o Comitê defendem a realização de “debates temáticos setoriais a serem convocados pelos departamentos e divisões” do Itamaraty. Por fim, pedem a “criação de um mecanismo de recebimento de contribuições por escrito” da sociedade civil a uma versão preliminar do Livro Branco, à exemplo de iniciativas que o próprio governo brasileiro já encabeçou em processos como a preparação do relatório nacional à Revisão Periódica Universal da ONU.
Um primeiro passo foi dado pelo Itamaraty: a convocação dos chamados Diálogos de Política Externa. Segundo nota conceitual do Ministério, essa jornada de debates entre os dias 26 de fevereiro e 2 de abril inscrevem-se no processo de elaboração do Livro Branco. Conectas foi convidada para ser expositora no painel Perspectivas da Nova Governança Internacional. “Esse é um primeiro passo, não pode de forma alguma ser o único”, avalia Camila.
Com relação ao conteúdo do Livro Branco relacionado aos direitos humanos, o CBDHPE pede especialmente mais clareza sobre tópicos que tendem a aparecer com formulações dúbias ou nebulosas, como nos casos de “diretrizes, princípios e normativa nacional e internacional que regem a definição das posições internacionais do Brasil em questões de direitos humanos” e do uso de “medidas coercitivas multilaterais que não envolvam o uso da força em casos de graves violações de direitos humanos e do Direito Internacional Humanitário”.
Veja aqui as propostas do grupo na íntegra.
Participação: Conselho Nacional de Política Externa
Tanto a última sabatina de Patriota quanto a de Figueiredo foram reveladoras sobre uma outra proposta que começa a ganhar corpo: a da formação de mecanismo formal e permanente de participação social em política externa formado por representantes de diversos setores da sociedade civil.
Em sua sabatina no Senado, Patriota disse que a ideia já vinha sendo debatida no Itamaraty: “Estamos estudando a criação de um conselho de contato com a sociedade civil, onde discutiríamos os objetivos e linhas gerais da política externa brasileira. A Conectas pode ter certeza que só aumentará daqui para frente os contatos com organizações como ela.” Já o atual Chanceler, quando sabatinado no Senado recentemente, reiterou o compromisso de criação de, em suas palavras, “um conselho consultivo sobre política externa com a participação da sociedade civil”. Figueiredo foi enfático, alegando que “não há dúvidas que isso [criação do órgão] vai ser feito”.
Conectas tem participado da interlocução com outras entidades da sociedade civil e o governo para a criação desta instância. A demanda por um mecanismo formal e permanente que sirva de espaço para interlocução entre sociedade civil e governo é antiga na Conectas. Nele, o governo brasileiro prestaria contas públicas de suas ações e obteria subsídios para futuras decisões em política externa. “A definição da natureza, escopo e funcionamento deste espaço deve ser feita junto à sociedade, pois de nada vai adiantar criar algo que acabe sendo inócuo”, diz Camila. Para Conectas, por exemplo, é fundamental que sua composição seja plural, abarcando diferentes setores da sociedade, incluindo ONGs, movimentos sociais, academia, mundo sindical e, inclusive, o empresariado.
Outra preocupação é de que o conselho, sendo consultivo, tenha mecanismos de cobrança para que o governo, uma vez que não acolha as recomendações do órgão, apresente suas justificativas a ele. Caso contrário, não haverá um retorno, o que esvazia o sentido da participação.
Conectas também se preocupa com a forma como os membros deste futuro órgão prestariam contas públicas sobre como exercem seus mandatos, em nome do interesse público envolvido. Para que seja possível um verdadeiro escrutínio público, por exemplo, as sessões do conselho consultivo deveriam ser transmitidas e registradas em atas públicas, tendo o público interessado como monitor. A organização ainda defende de forma contundente que o órgão deva garantir a inclusão do tema de direitos humanos em seus debates e deliberações.
Política externa como política pública
“Deixar de lado esse caminho já não é uma opção no mundo em que vivemos. A opção que existe para o Itamaraty é apenas sobre o ritmo e a forma como essa abertura e essa maior participação pública se darão nos próximos meses e anos. Nisso, estamos há muito tempo presentes e atuantes, apontando os caminhos que, do nosso ponto de vista, tornam essa transformação inevitável mais fluída e participativa”, concluiu Camila Asano.
Veja depoimento de Camila Asano sobre os diálogos sobre política externa promovidos pelo Itamaraty: