A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do sistema prisional brasileiro aprovou ontem (5/8) seu relatório final. O documento não traz novidades sobre a natureza e a extensão dos problemas que acometem a população carcerária – segundo o balanço de junho de 2014 do Ministério da Justiça, de 607,7 mil pessoas. Maus-tratos, violência, falta de condições materiais, falta de acesso à saúde, educação, defesa e trabalho, além da superlotação, continuam compondo o cenário de abandono que caracteriza as prisões brasileiras.
A surpresa desconcertante do relatório está na conclusão sobre o que deve ser feito para mudar o quadro: ignorando a posição de juristas, sindicatos, da sociedade civil e do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária), os deputados apontam a privatização total ou parcial do sistema como saída para a crise – um modelo que vem sendo aplicado em cada vez mais estados, ainda que sem regulamentação.
Para Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas e membro do CNPCP, “a conclusão mostra que os deputados veem os presos como uma commodity e o sistema prisional como um mercado em expansão a ser explorado”. “A experiência de países como os Estados Unidos prova que os interesses econômicos são absolutamente irreconciliáveis com os objetivos do sistema prisional, que deveriam ser a recuperação e a ressocialização. Afinal, não faria sentido apostar em um mercado sem, ao mesmo tempo, trabalhar por sua ampliação – o que, nesse caso, significa privar cada vez mais pessoas de liberdade. Há um claro conflito de interesses.”
Segundo o Ministério da Justiça, a taxa de encarceramento brasileira (número de presos em cada grupo de 100 mil pessoas) cresceu quase 120% desde o ano 2000. Entre os quatro países com as maiores populações carcerárias do mundo (Estados Unidos, China, Rússia e Brasil), a taxa brasileira é a única que aumenta. De acordo com levantamento de 2014 da Pastoral Carcerária, mais de 20 mil presos em sete estados cumprem pena em cadeias privatizadas.
Na entrevista abaixo, Fuchs explica por que, ao contrário do que afirmam os deputados, a expansão desse modelo é prejudicial para a política prisional brasileira.
1. Na prática, o que significa privatizar um presídio?
Hoje a privatização se dá de vários modos e em diferentes graus no sistema prisional. Ela acontece quando o Estado delega a uma empresa a execução de um ou vários serviços, que podem ir da limpeza e do fornecimento de marmitas à construção e administração do presídio, passando pela segurança e o atendimento médico. Há casos, inclusive, da privatização do serviço de assistência jurídica – ou seja, o advogado que atende o preso é contratado pela mesma empresa que administra a unidade, em claro conflito de interesses.
2. Por que é um erro defender a privatização, como faz o relatório da CPI?
Primeiro, porque essa conclusão mostra que os deputados veem os presos como uma commodity e o sistema prisional como um mercado em expansão a ser explorado. Não pode ser assim. A experiência de países como os Estados Unidos prova que os interesses econômicos são absolutamente irreconciliáveis com os objetivos do sistema prisional, que deveriam ser a recuperação e a ressocialização. Afinal, não faria sentido apostar em um mercado sem, ao mesmo tempo, trabalhar por sua ampliação – o que, nesse caso, significa privar cada vez mais pessoas de liberdade. Há um claro conflito de interesses.
3. Mas os deputados afirmam que a privatização é mais barata e eficiente.
Também é preciso refutar esse argumento econômico. Os números utilizados pelos deputados no relatório derivam de uma única fonte, a Abesp (Associação Brasileira de Empresas Especializadas na Prestação de Serviços a Presídios). Não há qualquer evidência empírica de que a privatização seja menos onerosa para os cofres públicos. Inclusive, há vastos exemplos de que é justamente o oposto. O Paraná, primeiro estado a adotar a privatização no sistema prisional, já voltou atrás e retomou controle de todas as unidades. O Reino Unido já aboliu esse modelo, a Alemanha o proibiu. Um estudo do Departamento de Justiça dos Estados Unidos foi enfático ao afirmar que o custo-benefício propagado pelas empresas e pelas autoridades não se materializou.
4. E do ponto de vista das condições de detenção? O presídio privado é melhor que o público?
Para fazer essa comparação seria preciso partir de um ponto em comum, o que é impossível porque os presídios privados são beneficiados com a possibilidade de não receber mais pessoas do que os contratos estabelecem e também de escolher o perfil de presos que querem abrigar. Os presídios privados operam em uma realidade bastante diferenciada, privilegiada eu diria. É preciso pontuar, ainda, que o repasse de verbas por preso para o sistema privado é maior do que no sistema público, como mostra o próprio relatório da CPI. Como seriam as condição nos presídios públicos se o investimento do Estado fosse o mesmo?
Por outro lado, não são incomuns as situações de crise em presídios onde grande parte dos serviços são privatizados. Um exemplo trágico é o caso de Pedrinhas, no Maranhão, onde praticamente toda a segurança é feita por terceirizados. Essas pessoas recebem salários muito menores, estão menos preparadas e às vezes sequer sabem que vão lidar diretamente com os presos quando são contratadas.