O Brasil surpreendeu positivamente em seu discurso, nesta semana, na Conferência Genebra II, realizada em Montreux, na Suíça, para discutir saídas para o conflito armado interno que já dura quase 3 anos na Síria. Apesar de ter enviado um representante de segundo escalão, enquanto a maioria dos governos presentes enviou seus chanceleres, o governo brasileiro avançou em mensagens mais concretas do que das últimas vezes.
“Falaram de embargo de armas e de responsabilização dos culpados. Isso é positivo”, disse Camila Asano, coordenadora de Política Externa da Conectas. Ela analisou o discurso do secretário geral do Itamaraty, Eduardo dos Santos. Camila manteve a crítica contra a falta de assertividade e transparência demonstrada na véspera do encontro, quando o Ministério das Relações Exteriores publicou uma nota tímida, de apenas 6 linhas, e voltou a criticar o fato de o Brasil ter anunciado doações de valores irrisórios para a mitigar os efeitos da crise humanitária que já deixou mais de 100 mil mortos.
Num mundo cheio de sinais cifrados como é o mundo diplomático, o que significa o Brasil ter enviado seu chanceler para visitar um estádio de futebol da Copa em vez de enviá-lo para esta conferência?
Camila Asano – Significa uma falta de clareza na definição das prioridades em matéria de política externa por parte do Governo. A despeito do pleito por maior protagonismo nos grandes temas de política internacional – no qual se insere a demanda por uma assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas – o fato de o Brasil não ter enviado o ministro Figueiredo para chefiar a delegação (ao contrário da esmagadora maioria das 40 representações enviadas ao encontro) que debateria uma das principais crises na paz e segurança internacionais hoje presentes no mundo revela falta de visão e coerência por parte de nossa diplomacia.
Quais os pontos positivos e os negativos do discurso?
Camila Asano – Em primeiro lugar, foi positivo o Brasil enfatizar que ”nunca deveríamos perder de vista o fato de que atrás das estatísticas existem pessoas de verdade, milhões delas. Suas vidas têm sido profundamente afetadas – e, no caso de dezenas de milhares, destruídas – pelo conflito na Síria”. Em uma tragédia como a da Síria, o fim do sofrimento das vítimas deve ser sempre priorizado, e não ficar a reboque de entraves políticos.
Também merece destaque o fato de o discurso ter sido mais objetivo ao apontar quais medidas o Brasil acredita serem necessárias para uma solução política para a guerra. Uma das medidas defendidas envolve assegurar que todos os responsáveis por violações de direitos humanos sejam trazidos à justiça, um comprometimento do Brasil em não apoiar a impunidade. Foi positivo também o pleito pela imediata adoção de medidas contra a violência direcionada a grupos mais vulneráveis, principalmente mulheres e crianças, grupos que têm sido especialmente afetados pela crise que assola o país. O pedido brasileiro de estabelecimento de um embargo de armas abrangente e efetivo dá maior concretude à posição brasileira reiteradamente externada de condenação à militarização do conflito.
Dentre os aspectos negativos do discurso, destaco a menção a “importantes contribuições financeiras a esforços de assistência humanitária das Nações Unidas na Síria e na região”, declaração que não condiz com a dimensão do compromisso financeiro do Brasil na II Conferência de Doadores do Kuaite, ocorrida na semana passada, na qual o Brasil se comprometeu a doar US$ 300 mil para o alívio da crise humanitária na Síria, o menor valor dentre todos os países que estiveram no Kuaite e Montreux. A facilitação para vistos de entrada a nacionais sírios que buscam refúgio no Brasil, estabelecida em setembro de 2013, foi um outro ponto anunciado como boa prática do Brasil que apareceu de forma ambígua no discurso. Ainda que positiva em sua concepção, a facilitação ainda enfrenta problemas de implementação em decorrência da falta de critérios claros de concessão, já que, na prática, cada embaixada brasileira adota um critério discricionariamente definido.
Conectas foi dura na véspera, sobre o conteúdo da nota do Itamaraty, onde muito pouco era dito sobre as posições brasileiras na questão síria. Isso é falta de transparência ou as relações diplomáticas precisam mesmo desse tom?
Camila Asano – A nota do Itamaraty na véspera da reunião em Montreux exemplifica a necessidade de melhora na transparência e participação social na definição e implementação da política externa brasileira. Tomo como exemplo a própria Conferência Genebra II. O Brasil foi formalmente convidado a participar do encontro no dia 6 de janeiro, porém, somente na véspera divulgou nota sobre a posição do País no encontro e, ainda assim, em termos bastante simplórios. Apenas para se ter um parâmetro de comparação, o secretário-geral da ONU fez dez convites adicionais para Genebra II no domingo, dia 19, à noite; no mesmo dia o México, um dos novos países convidados, já havia divulgado no site de sua chancelaria a posição do país a ser defendida na Suíça.
Por que o Brasil doa tão pouco para a ajuda humanitária na Síria? Quanto seria o bastante?
Camila Asano – Acredito que falta coerência ao Brasil no que se refere ao tratamento da crise humanitária na Síria. Em diversas oportunidades o Itamaraty e a própria Presidência mencionam a importância que o tema tem para o Brasil, considerando o peso que a ascendência síria tem na identidade nacional, aspecto sempre acompanhado pela declaração de compromisso em contribuir financeiramente com a assistência humanitária à crise na Síria. Não obstante, segundo dados da ONU e informações providas pelo próprio governo brasileiro, dentre as 10 maiores economias do mundo o Brasil foi o país que menos doou para o alívio da situação na Síria e em países vizinhos em 2013. Sobre o quanto seria bastante, ainda que soe pouco factível esperar que o Brasil efetue doações do vulto de países desenvolvidos ou com interesses diretos na região – lembrando que o Kuaite anunciou compromisso de doar US$ 500 milhões em 2014 -, talvez uma boa medida seja as contribuições anunciadas de outros países emergentes, como Índia (US$ 2 milhões) e México (US$ 3 milhões).