O governo federal publicou na manhã desta segunda-feira (6/3) o relatório oficial do Brasil para a RPU (Revisão Periódica Universal da ONU), uma sabatina em que todos os membros das Nações Unidas avaliam a situação de direitos humanos em um país específico. A terceira revisão do Brasil está marcada para o dia 5/5 em Genebra, na Suíça. O processo acontece a cada quatro anos e meio.
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A publicação do relatório brasileiro era esperada com expectativa já no início de fevereiro, quando terminava o prazo para o envio do documento à ONU. O Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, do qual Conectas é membro-fundador, chegou a fazer um pedido através da Lei de Acesso à Informação para ter acesso ao conteúdo.
A versão preliminar do relatório, divulgada em outubro de 2016, havia recebido fortes críticas de organizações de direitos humanos e de órgão como a Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados por estar “distante da realidade”.
O texto preliminar foi discutido em audiência pública na própria CDHM da Câmara dos Deputados em dezembro. As críticas ao conteúdo e ao tom foram tamanhas que o governo chegou a ampliar o prazo público para a apresentação de sugestões.
“Percebemos que, em diferentes aspectos, a nova versão diminui a distância entre o que está escrito e a realidade, numa clara demonstração da força da sociedade civil e da sua capacidade de apontar falhas e demandar melhorias nos processos institucionais”, afirma Camila Asano, coordenadora de Política Externa da Conectas.
Apesar de reconhecer avanços na linguagem e na metodologia de elaboração do documento, a especialista manteve as críticas em relação ao conteúdo. “Ainda estamos longe de dar uma resposta à altura dos problemas do país nesse âmbito. Um claro exemplo é a menção ao rompimento da barragem da Samarco, Vale e BHP Billiton em Mariana, o mais grave desastre socioambiental do país.”
Segundo Asano, a falta de qualquer referência ao episódio na versão preliminar havia sido duramente questionada pela sociedade civil, mas a nova versão, “em lugar de corrigir adequadamente o vazio, faz apenas uma breve menção burocrática – num claro reflexo da maneira com que o governo vem tratando a questão ao longo do Rio Doce. O assunto mereceu menos de 15 palavras.”
O desastre aparece no parágrafo 145, na última página do documento, em seção dedicada ao meio ambiente: “o Brasil ratificou o Acordo de Paris em 2016 e está comprometido a reduzir as emissões de carbono em 37% até 2025 e em 43% até 2030. Isso demonstra o firme compromisso do estado brasileiro com a questão ambiental. No plano nacional, persiste o desafio de efetivação de políticas públicas e normativas ambientais. Um exemplo é o ocorrido na cidade de Mariana, Minas Gerais, em 2015.”
Outros temas apontados durante a audiência pública na Câmara permaneceram fora do relatório, como a repressão policial em protestos e a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congela o investimento público em áreas como saúde e educação pelos próximos vinte anos.
“Uma reforma dessa magnitude, com tamanho impacto em direitos sociais, jamais poderia ter ficado de fora do relatório. A falta de qualquer menção ao teto dos gastos mostra que o governo sequer se preocupou em tentar justificar como a medida, já classificada pelo especialista da própria ONU como ‘radical e sem compaixão’, não afetaria cruelmente os direitos humanos, sobretudo dos mais pobres”, afirma Asano.
A ausência de temas como esse pode ser explicada pela opção do governo de limitar o relatório a recomendações feitas no ciclo anterior da RPU. A decisão, no entanto, contraria os princípios orientadores da ONU para a elaboração do documento. Segundo o Alto Comissariado para os Direitos Humanos, o relatório oficial também deveria incluir “temas novos e emergentes, incluindo avanços e desafios” em cada um deles.
“Totalmente implementada”
Outra mudança trazida pela segunda versão do documento é a inclusão de uma tabela que mostra, de acordo com o governo, a avaliação do nível de implementação das 170 recomendações feitas ao Brasil no ciclo anterior da RPU. O anexo, no entanto, não traz explicações sobre a metodologia utilizada na classificação.
De acordo com cálculos feitos pela Conectas, o governo federal afirma ter “implementado totalmente” 60% das recomendações recebidas em 2012; estar em “processo de implementação” de 32,94%; e ter “implementado parcialmente” 4,11%. Apenas uma recomendação (0,58%) aparece como “não implementada” e quatro (2,35%) não foram avaliadas.
Entre as “totalmente implementadas” aparece, por exemplo, a recomendação feita pela Espanha sobre violência policial: “revisar os programas de treinamento em direitos humanos para as forças de segurança, enfatizando o uso da força segundo os critérios de necessidade e proporcionalidade, e pondo fim às execuções extrajudiciais”.
Para Asano, “é inconcebível que o governo brasileiro afirme para ONU ter implementado totalmente uma recomendação que pedia o fim das execuções extrajudiciais quando ainda testemunhamos números assustadores de violência policial”.
Outro exemplo é a recomendação da Grécia sobre presídios: “realizar mais esforços para melhorar a situação nos centros de detenção, especialmente nas prisões femininas.”
“Não temos pista sobre a metodologia utilizada pelo governo para classificar esses compromissos como ‘totalmente implementados’ porque esses indicadores não existem, nem mesmo no ObservaDH”, afirma Asano em referência à plataforma desenvolvida pelo Brasil para acompanhar recomendações feitas ao país na ONU.
“O esforço de analisar o grau de implementação das recomendações é válido e urgente, mas a maneira como a avaliação foi feita só reforça a ideia de que, no Brasil, o acompanhamento da situação de direitos humanos no Brasil ainda depende exclusivamente, na maioria dos casos, da palavra do governo federal”, completa.