De qualquer forma, com ou sem o seu afastamento definitivo do cargo, é incontestável que as forças que, a partir de hoje, se habilitam a dar sustentação ao governo interino, já anunciam iniciativas que, sob o pretexto de combater a crise econômica, consubstanciam-se, na verdade, em um ataque frontal aos direitos civis, políticos e sociais esculpidos na Constituição Federal de 1988.
É verdade que o país ainda está longe de alcançar os objetivos expressos no texto constitucional, tais como erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais. Mas também é verdade que avanços têm sido perpetrados neste caminho, desde a redemocratização. Por isso, é preciso defender inabalavelmente as recentes – e, por isso – frágeis conquistas, e anunciar que toda e qualquer medida que implique em retrocessos será deflagradora de profunda repulsa e denúncia por parte dos movimentos de direitos humanos.
Conectas condena o rebaixamento da importância dos direitos humanos na agenda deste governo interino por meio de mudanças institucionais como a anunciada incorporação do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos pelo novo Ministério de Justiça e Cidadania. As pretensões já anunciadas pelo partido do presidente interino Michel Temer, de acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas para o orçamento público no caso dos gastos com saúde e educação, também indicam uma escolha política que ameaça as garantias sociais no Brasil.
O alinhamento de forças conservadoras no Congresso tem promovido iniciativas extremamente preocupantes. Entre elas estão projetos que atentam contra o princípio da laicidade do Estado brasileiro. Temos um amplo rol de matérias em curso no Congresso Nacional que busca restringir direitos sexuais e reprodutivos, a exemplo do Estatuto da Família e alterações no Código Penal, que criminalizam mulheres e profissionais da saúde que prestam socorro às vítimas de violência sexual. Conectas repudia a decisão do presidente interino Michel Temer de formar um governo provisório apenas composto por homens. Essa é uma clara indicação de desvalorização da igualdade de gênero.
Outra onda de retrocessos em curso no país tem se dado na área da justiça criminal. O iminente risco de redução da maioridade penal e do aumento do tempo de internação é um claro exemplo de que se está buscando soluções movidas pela irracionalidade e o punitivismo, já que dados mundiais comprovam que o incremento punitivo não promove redução da criminalidade. A escolha de Alexandre de Moraes para a pasta da Justiça e Cidadania é particularmente preocupante, na medida em que denota que o presidente interino tem apreço por uma política criminal que desrespeita direitos humanos e rechaça o diálogo, como a que tem sido implementada em São Paulo, Estado onde o novo Ministro desempenhava a função de secretário de Segurança Pública até as vésperas de assumir posto.
A crise econômica pela qual o país passa exige uma ação equilibrada deste governo interino para que direitos humanos não se tornem uma moeda de troca, seja na política doméstica, seja na política externa do Brasil. Lamentavelmente, manifestações públicas do presidente interino e de seu partido têm sinalizado um sério risco de prevalência dos interesses privados sobre o interesse público.
As garantias trabalhistas claramente encontram-se vulneráveis, uma vez que já foi veiculada pelo PMDB a proposta de que convenções e acordos coletivos de trabalho negociados entre empregadores e empregados prevaleçam sobre a legislação trabalhista, mesmo que impliquem perdas aos trabalhadores. Preocupa também à Conectas a fragilização da responsabilidade socioambiental das empresas e do licenciamento ambiental frente a projetos de grande impacto. Temerosas matérias legislativas tramitam no Congresso, como a emenda constitucional que busca enfraquecer o marco do licenciamento ambiental e a aprovação do novo Código de Mineração sem os ajustes necessários para evitar desastres como o de Mariana/Rio Doce ou garantir a proteção dos direitos humanos das comunidades atingidas. A mesma dinâmica de priorização dos interesses privados em detrimento dos direitos humanos se observa nas ameaças aos direitos dos povos indígenas e tradicionais do Brasil, por exemplo, por meio da inviabilização das demarcações de terras.
Acende-se também um alerta de que a política externa brasileira possa ser reduzida a mero instrumento de promoção comercial do país. A Constituição Federal preconiza que as relações internacionais do Brasil devem conferir prevalência aos direitos humanos. Em resistência à toada do desmonte da Constituição, Conectas seguirá atenta ao descumprimento desta obrigação constitucional em nome, por exemplo, de assinaturas de acordos comerciais. Preocupa em especial o papel que a indústria de armas nacional pode ter nesse projeto de promoção comercial do Brasil no mundo. O Brasil tem desempenhado, ainda que com ambiguidades, um papel importante no xadrez internacional em questões globais como a revisão da política mundial de drogas e oferecendo alternativas à crise migratória atual por meio de sua política de vistos humanitários a sírios e haitianos. Iniciativas como essas devem permanecer.
A Conectas reitera seu compromisso de continuar trabalhando na defesa e promoção de direitos humanos para a construção de uma sociedade livre, justa e atuante.