No texto que escreveu para a graphic novel “Jeremias – Pele”, quadrinho que celebra um dos personagens icônicos de Maurício de Sousa, o rapper Emicida fala da importância da representatividade. Ele cita uma conversa que teve com a atriz Elisa Lucinda, na qual ela fala que é preciso que as pessoas negras parem de chegar atrasadas. “Achei estranho em um primeiro momento. Afinal, cheguei quando consegui chegar. Mas o que ela queria dizer era que precisávamos ser escudos, e não bandaids. É no atraso e na ausência de nossa voz que os piores pesadelos se solidificam”, escreveu.
Em seguida, o músico relata a frustração de ver a filha preferindo um objeto enfeitado com uma princesa loira a uma princesa “escura como nós”. “Ela chorou dizendo que queria uma caixa de princesa e não ‘aquela’ [negra]. Eu havia chegado atrasado”, admite. “A ausência de referências positivas nos rouba o direito de imaginar, estabelece um teto para nossos sonhos.”
A ausência de referências positivas também marginaliza as pessoas negras, associando-as à violência e criando um contexto no qual é aceitável pisar em seus pescoços — como aconteceu com o norte-americano George Floyd e tantos outros brasileiros não filmados.
Não por acaso, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), 67% da população carcerária do Brasil é de pretos e pardos. Além disso, os negros são os que mais morrem por homicídios. De acordo com o Atlas da Violência 2020, a taxa de homicídios de pessoas negras no Brasil cresceu 11,5%, entre os anos de 2008 e 2018, o que representou um salto de 34 para 37,8 mortes por 100 mil habitantes. Já entre os não negros houve uma diminuição de 12,9%.
Segundo o relatório, em 2018, pessoas negras representaram 75,7% das vítimas de todos os homicídios do Brasil. “É como se estivéssemos falando de países diferentes, tamanha a disparidade”, afirmou, na apresentação da pesquisa, Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e uma das autoras do estudo.
Para diminuir o abismo, ações da sociedade civil e movimentos como o Black Lives Matter ganham cada vez mais força nas redes. Na política, ao responder a consulta formulada pela deputada Benedita da Silva (PT-RJ), fez história a decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) de reconhecer a existência de racismo institucional nos partidos, permitindo a distribuição igualitária de recursos e tempo de propaganda eleitoral entre candidatos negros e brancos.
Em sua coluna na Folha de S.Paulo, o advogado Silvio Almeida comparou a importância da decisão do TSE à morte do ator Chadwick Boseman, que viveu o herói Pantera Negra no cinema. “No momento em que a questão racial ganha extrema relevância nas disputas políticas, é sintomático que uma parcela expressiva da população se identifique mais com um rei negro de uma nação fictícia do que com políticos do mundo real”, escreveu.
Para Almeida, a representatividade não é o objetivo final da política, mas o sintoma de algo maior, a indicar que as reivindicações das minorias irritam as estruturas de poder. “O que assusta a subdesenvolvida elite brasileira é a possibilidade de que um maior espaço para as minorias faça com que a política não se limite a ser a escolha de quais homens brancos, heterossexuais e cristãos irão governar a cada quatro anos”, concluiu.