O sistema prisional brasileiro enfrenta uma crise profunda e de problemas múltiplos, marcada pelo encarceramento em massa, condições desumanas e outras violações sistemáticas dos direitos humanos.
De um modo geral, o Brasil não cumpre diretrizes internacionais já estabelecidas para o tema, como as Regras de Mandela, que são um conjunto de normas internacionais adotadas pela ONU para garantir um tratamento humano e digno às pessoas encarceradas.
Originadas da experiência de Nelson Mandela, que passou 27 anos na prisão durante o apartheid na África do Sul, essas regras foram criadas para assegurar que pessoas encarceradas sejam tratadas com respeito à sua dignidade e direitos fundamentais.
Por isso, princípios estabelecidos nas Regras de Mandela alinham-se às garantias fundamentais do cidadão previstas na Constituição Federal Brasileira de 1988. Elas servem como um guia para países que buscam reformar seus sistemas prisionais, promovendo condições que não apenas punam, mas também ofereçam oportunidades de reabilitação e ressocialização.
Conheça algumas das principais regras em perspectiva com a realidade das prisões brasileiras.
Todos os reclusos devem ser tratados com o respeito inerente ao valor e dignidade do ser humano. Nenhum recluso deverá ser submetido a tortura ou outras penas, ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância. A segurança dos reclusos, do pessoal do sistema prisional, dos prestadores de serviço e dos visitantes deve ser sempre assegurada
Realidade no Brasil
A tortura e os tratamentos cruéis são comuns nas prisões brasileiras. Relatos de violência física, psicológica e negligência médica são frequentes. A superlotação e a falta de infraestrutura adequada agravam essas condições desumanas.
Em Minas Gerais, cerca de 775 denúncias de tortura e maus tratos foram registradas em 2023 nas 43 prisões do estado, um aumento de 21% em relação a 2022, segundo o relatório anual de atividades do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de MG (Conedh).
Estas Regras devem ser aplicadas com imparcialidade. Não deve haver nenhuma discriminação em razão da raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, património, nascimento ou outra condição. É necessário respeitar as crenças religiosas e os preceitos morais do grupo a que pertença o recluso.
Para que o princípio da não discriminação seja posto em prática, as administrações prisionais devem ter em conta as necessidades individuais dos reclusos, particularmente daqueles em situação de maior vulnerabilidade. As medidas tomadas para proteger e promover os direitos dos reclusos portadores de necessidades especiais não serão consideradas discriminatórias.
Realidade no Brasil
Pessoas negras representam a maioria da população carcerária. Além de enfrentarem um encarceramento desproporcional, a discrepância no tratamento e nas taxas de condenação entre pessoas negras e brancas reflete as desigualdades estruturais presentes no sistema judicial brasileiro.
Uma pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper mostrou que, só em São Paulo, 31 mil pessoas pardas e pretas foram enquadradas como traficantes em situações similares àquelas em que brancos foram tratados como usuários.
As diferentes categorias de reclusos devem ser mantidas em estabelecimentos prisionais separados, considerando sexo, idade, antecedentes criminais e razões da detenção.
Realidade no Brasil
Não há separação adequada entre presos provisórios e condenados, jovens e adultos, homens e mulheres. Essa mistura agrava a violência e dificulta a ressocialização.
As celas ou locais destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por mais de um recluso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário de população prisional, for necessário que a administração prisional central adote exceções a esta regra deve evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou local.
Realidade no Brasil
A superlotação é uma constante, com celas projetadas para poucos pessoas abrigando múltiplos detentos que, em muitos casos, dormem no chão devido à falta de espaço. Hoje, enfrentamos uma superlotação nos presídios, que impede o processo de ressocialização e potencializa a corrupção e ampliação de facções. Dados daSecretaria Nacional de Políticas Penais – Governo Federal apontam que atualmente são 649,6 mil pessoas privadas de liberdade e apenas 482,9 mil vagas disponíveis no sistema.
Todos os locais destinados aos reclusos, especialmente os dormitórios, devem satisfazer todas as exigências de higiene e saúde, tomando-se devidamente em consideração as condições climatéricas e, especialmente, a cubicagem de ar disponível, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.
A prestação de serviços médicos aos reclusos é da responsabilidade do Estado. Os reclusos devem poder usufruir dos mesmos padrões de serviços de saúde disponíveis à comunidade e ter acesso gratuito aos serviços de saúde necessários, sem discriminação em razão da sua situação jurídica.
Realidade no Brasil
As condições de higiene são deploráveis, com falta de saneamento básico, ventilação inadequada e alimentação insuficiente. O acesso a serviços médicos é extremamente limitado e frequentemente negligenciado. Presos com doenças graves muitas vezes não recebem o tratamento necessário, resultando em mortes evitáveis. As doenças infecciosas são comuns devido às condições insalubres.
Em estudo realizado em 2016 e 2017, o Grupo de Pesquisa sobre “Saúde nas Prisões”, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), analisou as causas de óbito no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro e constatou que “as doenças infecciosas foram responsáveis por 30% das mortes na população carcerária, seguidas pelas doenças do aparelho circulatório (22%), causas externas (12%) e as doenças do aparelho respiratório (10%)”.
O estudo também concluiu que há “um expressivo excesso de mortes potencialmente evitáveis nas prisões, o que traduz importante desassistência e exclusão dessa população do Sistema Único de Saúde”, de modo a configurar uma taxa de letalidade por doenças infecciosas cinco vezes superior à da população geral.
Para os efeitos tidos por convenientes, o confinamento solitário refere-se ao confinamento do recluso por 22 horas ou mais, por dia, sem contato humano significativo. O confinamento solitário prolongado refere-se ao confinamento solitário por mais de 15 dias consecutivos.
Realidade no Brasil
O confinamento solitário é utilizado de forma punitiva e por períodos prolongados, violando os direitos das pessoas presas e exacerbando problemas de saúde mental.
Os procedimentos de entrada e revista de visitantes não devem ser degradantes e devem ser regidos por princípios tão protetivos como os delineados nas Regras 50 a 52. As revistas feitas a partes íntimas do corpo devem ser evitadas e não devem ser aplicadas a crianças.
Realidade no Brasil
As revistas são muitas vezes humilhantes e invasivas, especialmente para mulheres e crianças. O ambiente hostil desencoraja visitas e agrava a desconexão dos presos com suas famílias. Segundo o relatório “Revista vexatória: uma prática constante”, a maioria das pessoas que visita algum parente em presídio afirma que já enfrentou a revista íntima, totalizando 77,7% das pessoas entrevistadas. Dentre essa porcentagem, 97,7% corresponde ao público feminino. Em relação à raça, percebe-se que a violação ocorre de forma muito mais acentuada em pessoas negras, 69,9% – 15,4% pretas e 54,5% pardas – do que em brancas, 26,3%.
A presença de crianças é parte da realidade das visitas nos presídios. Grande parte dos familiares (54,1%) afirmou que seus filhos já foram submetidos a procedimentos vexatórios. Destes, 70,2% relatam que crianças tiveram seus corpos revistados. Outros 48,3% afirmaram que a criança precisou ficar nua e, aproximadamente 10%, foram obrigadas a tossir e/ou precisar agachar. E um dos dados mais graves: 23,1% das pessoas relataram que, quando seus filhos sofreram esses procedimentos íntimos, não lhes foi dado o direito de estar presente.
Há um julgamento do STF em curso sobre a inconstitucionalidade das revistas vexatórias em presídios, que foi suspenso após o pedido de vista do ministro Cristiano Zanin. A Rede de Justiça Criminal, composta por diversas entidades de defesa dos direitos humanos, dentre elas a Conectas, ressalta que tais revistas perpetuam uma violência institucional cruel, especialmente contra mulheres negras. A decisão final, agora sem data definida, poderá fazer história ao colocar fim a essa prática abusiva.
A crise no sistema prisional brasileiro é um reflexo das falhas estruturais e políticas do país. A decisão do STF de reconhecer o estado de coisas inconstitucional e exigir a criação de um plano de ação é um passo importante para começar a resolver essas violações.
No entanto, a implementação eficaz dessas reformas requer vontade política, recursos adequados e um compromisso genuíno com os direitos humanos.
A comparação com as Regras de Mandela destaca a necessidade urgente de uma transformação profunda no sistema prisional brasileiro. Apenas com uma abordagem abrangente e humanitária será possível garantir que as prisões cumpram seu papel ressocializador e respeitem a dignidade humana dos detentos.