Com a publicação do estudo “A Revisão da Lei de Patentes”, programada para amanhã, na Câmara dos Deputados, o Brasil está diante de uma oportunidade histórica de reforçar a garantia do direito à saúde. Em meio a tantos debates sobre a quantidade e a origem dos recursos que devem ser destinados à saúde, se perde de vista o fato de que boa parte desses recursos é gasta com produtos em situação de monopólio privado. Essa é uma ameaça constante à sustentabilidade do SUS, que tem raízes na lei de patentes. O estudo, lançado pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEDES), contribui para destacar os pontos da lei de patentes que podem ser melhorados de modo a favorecer o interesse público e ampliar o acesso à bens de saúde. Além disso, o Estudo faz recomendações aos poderes Executivo e Legislativo, como a aprovação de projetos de lei que já tramitam no congresso.
“Temos muitos recursos da saúde comprometidos com a compra de medicamentos patenteados, mas não temos uma lei de patente verdadeiramente comprometida com a saúde. Modificações na lei podem aumentar as possibilidades de compra de medicamentos genéricos a preços mais acessíveis, aumentando o acesso da população e economizando recursos públicos que podem ser utilizados para a melhoria do sistema de saúde como um todo”, diz Marcela Vieira, do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).
No Brasil, saúde é um direito de todos, que deve ser garantido pelo Estado; e não uma mercadoria, acessível conforme o poder aquisitivo de cada um. Mas regras comerciais, como as de propriedade intelectual, podem impedir a realização do direito à saúde, pois geram monopólios (via patente) sobre bens de saúde, dificultando o acesso a eles. O Brasil deixou de adotar medidas de proteção do interesse público, capazes de minimizar o impacto negativo das patentes na saúde, mas existem projetos de lei que podem mudar esse quadro, especialmente o PL 5.402/13, que contém uma série de reformas importantes para a saúde pública.
“A aprovação deste projeto de lei, bem como a de outros PLs que direcionam a lei de patentes para o interesse público, será um grande passo para aprofundar conquistas da sociedade civil brasileira, como a inclusão da saúde como um direito fundamental na constituição de 1988 e a distribuição universal e gratuita de medicamentos essenciais no SUS”, comenta Marcela. Cabe lembrar, por exemplo, que o programa brasileiro de Aids já foi ameaçado pelo alto custo de medicamentos patenteados. O risco de “descontinuidade” da distribuição de medicamentos foi anunciado pelo Ministério da Saúde em 2005, em razão do alto preço cobrado pela empresa Abbott para o lopinavir/ritonavir (kaletra), protegido por patente na época.
“É evidente que a garantia de direitos envolve custos, mas a pergunta fundamental não deve ser nunca sobre a interrupção desses direitos e sim sobre as razões dos custos elevados. Nossa perspectiva é sempre de que direitos humanos são incontestáveis, patentes não”, afirma Marcela.Nesse sentido, as constatações contidas no Estudo “A Revisão da Lei de Patentes” deixam claro que a adoção do sistema de patentes no Brasil elevou o “custo” do direito à saúde, mas não trouxe o retorno prometido. Desse modo, o Congresso brasileiro está se alinhando com a percepção global de que o reconhecimento de patentes na área farmacêutica foi fundado em promessas que até hoje não foram cumpridas. Promessas como investimentos, transferência de tecnologia e aumento da inovação. “ O sistema de patentes se desviou de seu propósito original e ao invés de estimular inovações genuínas está a serviço de estratégias ofensivas de patenteamento, focadas em inovações pouco relevantes usadas apenas para afastar competidores e aumentar os lucros das empresas detentoras das patentes. Uma revisão da lei de patentes é inevitável em qualquer pais que leve a sério o interesse público. O Brasil já tapou o sol com a peneira por tempo demais, se não agirmos agora, ficaremos cegos”, complementa Pedro Villardi, pesquisador da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e também membro do GTPI. “O Estudo é um marco no Brasil e deve ser encarado como um alerta sobre a armadilha em que caímos com a assinatura do Acordo Trips da OMC (Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio da Organização Mundial do Comércio) e como uma convocação para que os três poderem ajam agora para garantir que patentes não ameacem o direito à saúde no futuro”.