Conectas enviou essa semana aos membros da CNV (Comissão Nacional da Verdade) sete propostas para reverter a violência policial, combater a tortura e os maus tratos em locais de privação de liberdade e garantir a independência das perícias. Se acatadas, as recomendações integrarão o relatório final da Comissão, abrindo caminho para o debate sobre as instituições e práticas que se mantiveram depois do processo de redemocratização.
As sugestões são direcionadas ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário e incluem a criação de mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura, aos moldes do órgão federal criado em agosto de 2013, e a aprovação de projeto de lei que institui a audiência de custódia – instrumento que garante a apresentação de suspeitos ao juíz em até 24h depois da detenção, coibindo maus tratos e evitando prisões desnecessárias.
Criada no final de 2011, a CNV é o mais importante mecanismo federal de investigação e documentação de violações ocorridas no País entre 1946 e 1988 – período que engloba a ditadura militar (1964-1985). Espera-se que seu relatório final dê passos concretos no sentido de garantir o direito à memória, verdade e justiça às vítimas de perseguição.
Veja a íntegra das recomedndações feitas pela Conectas:
1) Recomendação: Criação de Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura em todos os estados da federação, de acordo com o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU.
Justificativa: A necessidade de prevenir e combater a prática de tortura no Brasil é pungente. A ONU afirma que a tortura é sistemática no Brasil (ONU, Comitê contra a Tortura. “Report on Brazil produced by the Committee under art. 20 of the Convention”, Documento CAT/C/39/2, parágrafo 178 (no original “torture and similar ill-treatment continues to be meted out on a widespread and systematic basis”). O Brasil é signatário do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU que obriga a criação de Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura. O Brasil, com anos de atraso, aprovou a Lei nº 12.847/2013 que institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Tanto o OPCAT quanto a Lei nº 12.847 recomendam a criação de Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura. Somado a isso, considerando que são apenas 11 membros no Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura para dar conta de toda extensão territorial brasileira e todos locais de privação de liberdade, se faz essencial a criação de Mecanismo estaduais para atuarem de modo coordenado.
Órgão: Governos estaduais e Assembleias Legislativas dos estados.
2) Recomendação: Criação da Audiência de Custódia (apresentação do preso em 24h na presença de um juiz).
Justificativa: A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) consigna em seu art. 7º a determinação de que: “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais…”. Esse encontro pessoal do juiz, na presença de defesa, com o acusado recém preso constitui um instrumento contundente em prol do combate à prática de maus tratos e tortura, já que pesquisas apontam que mais da metade dos presos relataram uso da força física contra si com o objeto de obrigá-los a fazer ou modificar declarações. Ademais, a criação de tal instituto – já existente em diversos países da América Latina – daria mais eficiência ao sistema processual penal e garantindo que os direitos da pessoa detida sejam assegurados com eficiência e agilidade. Já existe projeto de lei em tramitação nesse sentido (PLS n.º 554/2011).
Órgãos: Congresso Nacional, MJ, CNJ.
3) Recomendação: Fortalecimento e aumento da autonomia dos Conselhos da Comunidade. Criação de Conselhos da Comunidade nas comarcas em que não existem.
Justificativa: Os Conselhos da Comunidade estão previstos na Lei de Execução Penal como órgão da execução (art. 61, VII) e são um importante ator o controle social das unidades prisionais do país. As inspeções das unidades prisionais são instrumento essencial no combate e prevenção da tortura. Contudo, tais conselhos são vinculados aos Tribunais de Justiça. Tal elemento retira grande parte de sua autonomia e independência. É essencial que esse órgão seja fortalecido para que possa exercer seu papel fundamental de ator no controle social e que seja incentivada sua criação em todas as comarcas onde haja unidade prisional.
Órgãos: CNJ, MJ, Tribunais de Justiça.
4) Recomendação: Proibição de revista vexatória nos locais de privação de liberdade.
Justificativa: A revista vexatória é o procedimento pelos quais passam crianças, idosos, mulheres e homens para poder visitar algum parente em privação de liberdade. Esse procedimento os obriga a tirar a roupa, a agachar seguidas vezes e frequentemente ter os órgãos genitais analisados. Tal procedimento pode ser considerado tortura. O relator especial da ONU sobre Tortura, Juan Mendez, afirmou que a revista vexatória é trato cruel, desumano e degradante. É fundamental que o estado extinga tal prática. Já existe projeto de lei em tramitação nesse sentido (PL n.º 7.764/2014).
Órgãos: Congresso Nacional, Governos executivos estaduais, Tribunais de Justiça.
5) Recomendação: Perícias independentes das secretarias de segurança pública estaduais.
Justificativa: A falta de independência e autonomia entre o órgão pericial e os órgãos públicos de segurança gera conflitos de interesse que podem resultar em uma atuação coorporativa dos peritos, especialmente em crimes graves como a tortura. Portanto, é necessária a desvinculação dos Institutos Médico-Legais e da própria Perícia Criminal dos órgãos de polícia repressiva, em observância ao Protocolo de Istambul.
Órgãos: Congresso Nacional, MJ, Governos estaduais.
6) Recomendação: Criação de ouvidorias e corregedorias do sistema prisional e polícias externas e independentes
Justificativa: Os mecanismos de controle das instituições públicas precisam ser fortalecidos. Esses órgãos de controle das instituições são mais efetivos se forem independentes. Por essa razão deve ser composta por quadros externos à Administração e que provenham da própria sociedade civil, na medida em que a preservação de sua autonomia e a efetivação de seu mister requerem o afastamento das possibilidades de exercício corporativista de suas atribuições.
Órgãos: Governos estaduais, Assembleias Legislativas, Congresso Nacional, MJ.
7) Recomendação: Reforma das polícias
Justificativa: A divisão do trabalho policial entre uma força responsável por investigações (polícia civil) e outra pelo policiamento ostensivo e a “preservação da ordem pública” (polícia militar) foi determinada durante a ditadura militar, mas preservada na Constituição de 1988. Em seu art. 144, a Constituição determina que as polícias militares são subordinadas aos governos estaduais, mas também constituem “força auxiliar e de reserva do Exército”. É fundamental que esse modelo passe por uma profunda reforma que inclua os seguintes parâmetros mínimos: (1) unificação do ciclo de trabalho policial; (2) regime civil de organização – e não militar; (3) carreiras unificadas; (4) ouvidorias e corregedorias externas. Existe Proposta de Emenda Constitucional em tramitação nesse sentido (PEC n.º 51/2013).
Órgãos: Congresso Nacional, Governos estaduais, MJ.