A maioria dos brasileiros acredita que pessoas migrantes são bem recebidas no Brasil e que esse é o principal fator para que escolham o país. A qualidade da recepção, entretanto, depende sobretudo da cor, raça ou etnia dos migrantes. Essa é uma das conclusões da pesquisa inédita “Opiniões sobre Migrações”, realizada pelo Datafolha junto à Conectas.
O levantamento revela que 62% dos brasileiros avaliam que a boa recepção no Brasil é um fator que incentiva a vinda de migrantes. Contudo, há mais pessoas que acreditam que os migrantes de países ricos são bem recebidos no Brasil (83%) em comparação aos que vêm de países pobres (80%). Além disso, 14% das pessoas entrevistadas disseram que o Brasil recebe mal ou muito mal os migrantes desses países mais pobres, para apenas 2% que acreditam que a recepção é ruim aos que vêm de países ricos.
Essa diferença no acolhimento, para os entrevistados, é motivada especialmente por questões raciais. Um a cada cinco entrevistados apontou que esse é o fator decisivo em como os migrantes são tratados no Brasil, à frente de outros aspectos como sexualidade, identidade de gênero e religião.
“Acredito que exista uma concepção do senso-comum de que o Brasil é um país hospitaleiro, acolhedor e generoso. Vivenciamos muitas experiências exemplares de apoio, campanhas, ofertas de trabalho, inserção e boa acolhida a crianças nas escolas, além de muitas organizações sociais que atuam neste universo do atendimento à integração de migrantes e refugiados”, nas palavras da diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos e pesquisadora da migração Rosita Milesi. Ela também reconhece, contudo, falhas na acolhida brasileira. “Não resta dúvida de que temos muito a lamentar no tratamento à população migrante. É frequente e notório, quando olhamos para a realidade, constatar movimentos e atitudes de xenofobia, racismo e rejeição à presença de migrantes e refugiados. E essas reações, muitas vezes, são violentas, agressivas, sem escrúpulos. O Brasil carrega duras marcas de racismo, o que se mescla com sentimentos xenófobos, sobretudo contra pessoas migrantes e refugiadas negras”, diz.
O preconceito e o despreparo para lidar com o diferente revelam-se em ofensas e falta de oportunidades no cotidiano, mas também na falta de políticas públicas que levem em consideração a especificidade de cada migrante, ressalta a coordenadora do Programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas, Raissa Belintani. Ela relembra o caso dos cerca de 300 afegãos que ficaram acampados no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, entre 2022 e 2023, porque chegaram ao país em fuga do Talibã e não encontraram acolhimento do governo brasileiro.
“Precisamos de mediadores culturais, na área da saúde e na Polícia Federal, por exemplo, para auxiliar nos atendimentos aos migrantes. Falta entendimento sobre culturas específicas. Alguns afegãos não queriam ir para abrigos porque eles separavam famílias, homens e mulheres e isso, na cultura deles, é muito grave. Na saúde, mulheres afegãs só podem ser atendidas por mulheres, especialmente na ginecologia e no parto, por exemplo. Esse tipo de questão cultural precisa ser assimilado por servidores públicos. Uma forma inclusive de empregar pessoas migrantes é inseri-las na mediação cultural”, diz.
A presidente do Conselho Municipal de Imigrantes de São Paulo (CMI), a advogada Hortense Mbuyi, resume a recepção de migrantes no Brasil em uma frase: “O Brasil não acolhe, só recebe”. Refugiada congolesa, ela vive no país há quase uma década e conta que, ainda hoje, não teve oportunidade de construir a vida que desejava. “Quem acolhe o migrante em São Paulo é a sociedade civil. Eu quero revalidar meu diploma. Eu quero ter meu salário e comprar o que eu quiser para comer. Conseguir dinheiro para reunir minha família, porque deixei minhas filhas na África e não tenho como juntar dinheiro para passagem para trazê-las para cá”, descreve.
Ela prefere não lembrar, mais uma vez, a história de perseguição política que a obrigou a se mudar para o Brasil e, sim, ater-se às necessidades do presente e aos desejos para o futuro: “Fugi da perseguição política em meu país e vim buscar segurança, mas que segurança estou tendo?”, questiona. Ela destaca que, muitas vezes, é convidada a dar palestras e exposições sobre sua história sem que, no entanto, receba ofertas de emprego em organizações da sociedade civil, por exemplo, o que se repete com outros migrantes.
Sua gestão à frente do CMI terminou em maio, explica, e foi marcada pela luta para garantir o básico aos migrantes na maior cidade do Brasil. Por muito tempo, diz, os migrantes não tinham sequer auxílio de passagem de transporte coletivo para comparecer às reuniões do próprio conselho, por exemplo. Uma das pautas defendidas pela gestão de Hortense é a alocação de migrantes em serviços públicos para fazer a mediação cultural com outros migrantes, a fim de facilitar o acesso de todos aos seus direitos.
Em uma metrópole como São Paulo, os desafios da migração são particulares e, em alguns pontos, diferentes do que se vê em Roraima, por exemplo, ressalta a diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos e pesquisadora da migração Rosita Milesi. “Muitos migrantes se encontram no trabalho informal. Não é a melhor forma de trabalhar, mas é a realidade. Nas grandes cidades, acabam encontrando mais oportunidades, seja trabalhando com diaristas, seja adotando iniciativas próprias como venda de itens diversos, produção de comida, serviços de costura, de corte de cabelo etc. Essas alternativas são reduzidas em cidades pequenas e, quando a pessoa não encontra um emprego fixo ou acaba perdendo o emprego inicial, encontra-se em maior dificuldade para garantir a renda mensal necessária. Situações como essa geram também novos deslocamentos dos migrantes em busca de oportunidades e afetam a integração”, conclui.
Orladys Enriqueta Hernandez Montero, de 45 anos, chegou ao Brasil em 2017. Em sua cidade natal, Caracas, na Venezuela, ela era dona de um laboratório de exames clínicos e tinha uma rotina parecida com a de uma cidadã brasileira de classe média: dirigia seu próprio carro, mantinha a despensa abastecida com frutas e os dois filhos matriculados em aulas de esportes. Até que a economia venezuelana sofreu uma virada e, de repente, ela conta que não conseguia comprar insumos para sua empresa, que foi obrigada a fechar. Com isso, as contas de casa ficaram impossíveis de pagar. “Chegou um momento em que eu tinha que decidir entre a alimentação ou artigos pessoais, se compraria fruta para os meus filhos ou um desodorante. Eu não vim para o Brasil porque quis, foi uma decisão forçada”, conta.
Regularizar a documentação ao chegar em Roraima foi um processo simples, diz, porém outras dificuldades se revelaram rapidamente. Ela não sabia falar português e seu primeiro trabalho foi como faxineira, ganhando R$ 20 por dia. Até hoje, seis anos após sua chegada ao Brasil, não conseguiu revalidar seu diploma. “Tive que começar do zero. Em alguns momentos, fui estigmatizada por ser venezuelana. Motoristas de lotação já me falaram que venezuelana faz programa, mas eu nunca fiquei calada e digo que as pessoas não têm que generalizar. Outras vezes, escutei que venezuelano só vinha ao Brasil para roubar, que ficam nos postos de saúde pegando medicamento todo dia”, conta.
No final de 2022, a Cáritas Diocesana de Roraima lançou um estudo, em parceria com a Iniciativa REACH, sobre as condições de vida de migrantes em Boa Vista. O estudo revelou que 44% dos grupos de migrantes entrevistados relatam que pelo menos um de seus membros sofreu discriminação na cidade devido à nacionalidade. O preconceito foi percebido, principalmente, no local de trabalho (37%) e ao procurar trabalho (30%).
“Isso teria solução com um poder público engajado inclusive em mostrar para a população o quanto os roraimenses ganharam por causa da migração. Veja a quantidade de empregos abertos por causa dela”, pondera o secretário executivo da Cáritas Diocesana de Roraima, Ronildo Rodrigues.