Liderada pela ministra de Direitos Humanos Luislinda Valois, uma delegação de 36 autoridades do governo federal teve de explicar, diante de 109 Estados-membros da ONU, os desafios e retrocessos do país em direitos humanos. A sabatina, conhecida como RPU (Revisão Periódica Universal), aconteceu no dia 5/5 no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, na Suíça.
Esse é o principal instrumento internacional de avaliação da situação de direitos humanos nos países que fazem parte das Nações Unidas.
Durante mais de três horas, o governo foi confrontado com 255 recomendações sobre os mais variados temas, da violência policial à acolhida de migrantes e refugiados. Diversas delas refletiram a participação recorde da sociedade civil brasileira ao longo do processo de revisão. A Conectas assinou oito dos 53 relatórios independentes elaborados por organizações da sociedade civil para instruir a ONU e os países que participaram da sabatina.
Diferentes países enfatizaram, em seus discursos, a preocupação com a violência e a tortura nos presídios brasileiros e o desrespeito aos direitos dos povos indígenas.
Ao menos 33 recomendações sobre condições de encarceramento e acesso à Justiça foram feitas ao Brasil e outras 26 focaram na violência contra indígenas e acesso à terra. A violência policial, principalmente contra jovens pobres e negros das periferias, foi alvo de 15 recomendações, enquanto o racismo e a desigualdade racial apareceram em 18.
A delegação brasileira usou os momentos de fala de que dispunha na revisão para apresentar iniciativas avaliadas como positivas pelo governo federal. A ministra Valois chegou a prometer uma redução de 10% na população prisional brasileira até 2019, sem detalhar como a medida será alcançada.
Para a Conectas, o anúncio foi demagógico porque não leva em conta o crescimento anual da população carcerária e porque o governo não se mostra disposto a rever a atual política de drogas, um dos principais motores do encarceramento no país.
Apesar do destaque dado ao sistema prisional e à questão indígena durante a RPU, a delegação brasileira não contou com nenhum representante do Ministério da Justiça, pasta responsável pelos dois temas.
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Cerca de 23% de todas as recomendações feitas por nações europeias, por exemplo, tiveram como tema central a falência do sistema prisional e a violência policial. As violações contra povos indígenas e defensores de direitos humanos foram alvo de 22% das recomendações do bloco europeu.
Entre os asiáticos, a educação e a redução da pobreza somaram, juntas, mais de 26% das recomendações. Já na América Latina o interesse dos países se distribuiu de maneira equilibrada entre sistema prisional, educação e migrantes e refugiados (cada um deles foi tema de 7% das recomendações) e racismo e desigualdade racial (11%).
Entre as nações africanas (excluindo os países do norte do continente: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito e Sudão), prevaleceram recomendações contra o racismo e a desigualdade racial, por um lado, e sobre o sistema prisional, por outro (cada um dos temas com 15% das recomendações). A violência contra povos indígenas foi mencionada em 12% das recomendações de países africanos.
Nem todas as intervenções dos países que participaram da sabatina, no entanto, refletiram as principais preocupações das organizações de direitos humanos. Uma das recomendações feitas pelo Vaticano, por exemplo, foi duramente criticada pelas entidades. O país pediu que o Brasil “continue protegendo a família natural e o casamento, formado por um marido e uma esposa, como unidade fundamental da sociedade, assim como os nascituros”.
Essa não foi a primeira vez que o Vaticano fez uma recomendação que viola os princípios constitucionais brasileiros. No ciclo anterior da RPU, em 2012, a Santa Sé fez recomendação similar afirmando que esse arranjo familiar fornecia “as melhores condições para criar uma criança” – a proposta foi acolhida parcialmente pelo Brasil.
Em evento paralelo ocorrido imediatamente após a revisão, organizações da sociedade civil apontaram o descolamento entre o discurso diplomático sustentado pelo Brasil e a realidade de violações e retrocessos enfrentada internamente. Além disso, demandaram participação social e transparência na definição das recomendações que serão acolhidas pelo governo brasileiro. Para as entidades, é importante que haja um compromisso real com a efetiva implementação das medidas e que o país adote parâmetros técnicos e indicadores claros para seu acompanhamento e avaliação.
O governo federal tem até a sessão de setembro do Conselho de Direitos Humanos da ONU para apresentar a lista de recomendações acolhidas.
Veja algumas recomendações que foram destaque na RPU do Brasil:
SISTEMA PRISIONAL, TORTURA E ACESSO À JUSTIÇA
País | Recomendação* |
Espanha | Tomar medidas para reduzir o encarceramento em massa, particularmente encorajando o uso de medidas alternativas e garantindo que as audiências de custódia sejam amplamente utilizadas. |
Tailândia | Melhorar a estrutura dedicada à gravidez e à maternidade nas prisões, em linha com as Regras de Bangkok. |
Turquia | Lidar com o problema da superlotação das prisões a fim de eliminar as condições inumanas e tomar todas as medidas para prevenir a tortura; criar mecanismos locais em cada Estado para a efetiva implementação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. |
Estados Unidos | Melhorar os processos judiciais para minimizar a duração das prisões provisórias e acelerar os julgamentos, e considerar medidas alternativas à prisão para lidar com a superlotação dos presídios. |
Áustria | Garantir o respeito pela proteção de direitos humanos para todos os presos, inclusive assegurando condições de detenção de acordo com as leis e padrões nacionais e internacionais e protegendo-os contra tratamento cruel e degradante. |
POVOS INDÍGENAS
País | Recomendação* |
Noruega | Garantir que os povos indígenas estejam protegidos de ameaças, ataques e remoções forçadas; avançar na agenda de garantir aos povos indígenas o direito à consulta livre, prévia e informada. |
Peru | Continuar o processo de demarcação de terras indígenas. |
Canadá | Assegurar os direitos constitucionais dos povos indígenas, inclusive garantindo que a Fundação Nacional do Índio disponha dos recursos necessários para fazer o seu trabalho, particularmente no que tange à demarcação de terras indígenas, e tomar medidas para concluir investigações sobre assassinatos de indígenas. |
Alemanha | Garantir adequada consulta e participação integral dos povos indígenas em todas as medidas legislativas e administrativa que os afetem; proteger os povos indígenas de ameaças e ataques, inclusive defensores de direitos humanos indígenas; e proteger seu direito à terra, particularmente através do fortalecimento de programas de proteção, da conclusão de processo de demarcação de terra pendentes e da provisão de recursos e capacidade adequados à Funai |
VIOLÊNCIA POLICIAL
País | Recomendação* |
Reino Unido | Instituir treinamento obrigatório em direitos humanos para agentes policiais e implementar um programa de policiamento baseado em evidências para reduzir as mortes decorrentes da atividade policial em 10% até o próximo ciclo da RPU. |
Itália | Implementar programas de treinamento em direitos humanos para as forças de segurança, enfatizando o respeito aos critérios de necessidade e proporcionalidade para o uso da força. |
França | Garantir que atos de violência cometidos por membros das forças de segurança sejam devidamente processados a fim de combater a impunidade. |
Eslováquia | Adotar um código de conduta baseado nos parâmetros internacionais para definir condições específicas para o uso da força por parte dos agentes de segurança durante protestos. |
EMPRESAS E DIREITOS HUMANOS
País | Recomendação* |
Holanda | Desenvolver um Plano de Ação Nacional de Empresas e Direitos Humanos a fim de prevenir que projetos de desenvolvimento violem direitos das populações tradicionais, povos indígenas e trabalhadores e causem prejuízos para o meio ambiente e, ainda, de assegurar remédios efetivos com consultas efetivas às comunidades afetadas. |
Paraguai | Elaborar um abrangente Plano de Ação Nacional de Empresas e Direitos Humanos que leve em consideração os Princípios Orientadores da ONU. |
Equador | Continuar os esforços para punir os responsáveis pelo rompimento das barragens de contenção em Jacareí e Mariana e assegurar que às vítimas desse evento sejam assegurados acesso à Justiça e seus direitos à compensação justa e à reparação pelos danos causados. |
MIGRANTES E REFUGIADOS
País | Recomendação* |
Timor Leste | Implementar a nova Lei de Migração recém aprovada e sua perspectiva de direitos humanos para a questão migratória. |
Grécia | Implementar a Nova Lei de Migração integralmente. |
Filipinas | Acelerar os esforços para a ratificação da Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias e a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho. |
*Tradução livre