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Racismo nas corporações: por que pessoas negras são mais abordadas pela polícia

Em discussão no STF, a abordagem policial com base em perfis raciais é o principal impulsionador da necropolítica no Brasil

Sob justificativa de Sob justificativa de "fundada suspeita", pessoas negras passam por abordagem policial constrangedora no Brasil; tema está em discussão no STF (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Ao justificar a prisão de um homem em flagrante, o policial militar que realizou a operação afirmou, no auto, ter avistado “um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas”. Para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, flagrante foi a justificativa racista dada pelo agente público. 

De acordo com o agente de segurança pública, quando percebeu a aproximação da polícia, o homem em questão teria mudado o semblante, se virado e jogado algo no chão. Na revista pessoal, o policial relata ter encontrado cinco pinos de cocaína, e vários outros caídos ao redor. “(…) Só que com a queda no chão os mesmos acabaram se abrindo e vazando seu conteúdo, impossibilitando assim o recolhimento do conteúdo por ser um pó muito fino e em quantidade que é impossível a arrecadação.” Assim, a pessoa foi condenado em primeira instância a sete anos, onze meses e oito dias de prisão, em regime fechado, por ter sido flagrado com 1,53 g de cocaína. 

Após a condeção em primeira instância, a Defensoria Pública recorreu ao STJ (Supremo Tribunal de Justiça). Neste tribunal, a pena foi reduzida para dois anos e 11 meses de reclusão, sendo determinada a substituição da pena de prisão por duas medidas restritivas de direito, permitindo que o homem ficasse solto. Relator do caso, o ministro Sebastião Reis Junior, no entanto, entendeu que a abordagem policial em discussão se deu pela cor da pele e  votou pelo reconhecimento da ilegalidade da busca pessoal, mas foi voto vencido. 

Prática comum contra pessoas negras 

A situação é comum em diferentes partes do país. Segundo pesquisa recente do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes), pretos e pardos representam 63% das pessoas que dizem terem sido abordadas e revistadas pela polícia do Rio de Janeiro, apesar de serem 48% da população da cidade. Ainda de acordo com o levantamento, pessoas negras são mais propensas a sofrerem abusos e constrangimentos durante estas situações. 

Em entrevista à Agência Brasil, a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Cesec, afirma que existe uma cultura racial nas atividades policiais e ela começa com as abordagens e revistas constrangedoras. A pesquisa entrevistou 739 pessoas e aprofundou o levantamento com grupos de jovens moradores de favelas, entregadores, motoristas de aplicativos, mulheres e policiais. Com a análise de idade, gênero, cor, classe e território, os pesquisadores identificaram o perfil típico das pessoas abordadas pela polícia: homens negros, com até 40 anos, moradores de favela e periferia e renda de até três salários mínimos.

Caso está no STF 

O caso do homem condenado em primeira instância e no STJ ainda não terminou. A Defensoria questiona, agora, no STF  a licitude da prova por meio do HC individual (Habeas Corpus 208240), protocolado em outubro de 2020. A ação recebeu um pedido de amicus curiae da Conectas, em parceria com o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e a Iniciativa Negra Para um Nova Política Sobre Drogas. Para as organizações, a abordagem policial com base no perfil racial é uma prática comum, que precisa ser debatida com urgência. 

“Sob a justificativa de ‘fundada suspeita’ policiais abordam, majoritariamente, pessoas negras e realizam uma busca pessoal, sem que existam elementos concretos acerca de uma prática criminosa”, diz o documento. “Essa praxe dos agentes públicos está intimamente ligada ao racismo estrutural e institucional.”

Para Lays Araújo, articuladora política estratégica da Iniciativa Negra, é importante que o tema apareça no centro do debate, porque evidencia uma denúncia feita há muito tempo pela sociedade civil. “Sempre há o benefício da dúvida, mas isso nunca foi aventado para o jovem negro”, afirma. “Esse sistema de justiça que atua com base em perfis raciais traçados e bem definidos é o principal impulsionador da necropolítica. Porque nós sabemos que esses perfis têm o endereço periférico e a pele negra.”

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O ministro Edson Fachin, relator do HC, negou um pedido liminar em favor do homem, sob o argumento de ausência de ilegalidade flagrante na decisão atacada, seguindo, portanto, o mesmo entedimento do STJ. A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, manifestou-se contra a concessão do habeas corpus, afirmando dentre os argumentos quea abordagem policial não foi feita com base no perfil racial. Fachin analisa, agora, o pedido de amicus curiae das entidades e a ação não tem data para ser julgada. “Embora o HC seja individual, ele tem uma dimensão coletiva. Esperamos que o caso dê visibilidade no âmbito do judiciário às violações de direito praticadas por instituições de segurança pública que sustentam o racismo estrutural e seu reflexo no encarceramento em massa”, diz Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. 

Encarceramento de pessoas negras 

A chamada “guerra contra as drogas” impulsiona boa parte das abordagens policiais a partir da “fundada suspeita” e, consequentemente, leva pessoas negras para as prisões. “Com a falta de um critério objetivo para definir o que é porte e o que é tráfico, a atual política de drogas favorece o hiperencarceramento. Não à toa o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo”, afirma Sampaio. Segundo dados do Infopen, até dezembro de 2020, existia um total de 811.707 pessoas privadas de liberdade no país, sendo 65,9% pessoas negras. Os dados refletem como a questão da raça tem servido como base para regular a ordem social.  

Estrutura baseada no racismo 

“A estrutura punitiva no Brasil é fundada sob uma perspectiva racista. Ela sempre foi, e continua sendo, a perpetuação de um mecanismo de controle de uma parte da população que até outro dia era tida como mercadoria”, diz Araújo, que também faz parte da Rede Feminista de Juristas. Ainda segundo ela, quem perde é a sociedade como um todo. “Quando já temos pessoas que nascem carregando em si a imagem de um alvo, percebemos que elas são marcadas para morrer e não para esperançar”, reflete. “Para mudar essa estrutura, precisamos de uma tomada de consciência dos privilégios. Todo mundo reconhece que o racismo existe, mas ninguém se reconhece como racista. Essa conta não fecha.”


Corte IDH já condenou Argentina por abordagem policial ilegal 

Uma decisão da Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos) condenou, em 2020, o Estado argentino por duas abordagens, seguidas por prisões ilegais, ocorridas em 1992 e 1998, em Buenos Aires. De acordo com IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa),  que acompanhou o caso argentino na OEA, a sentença vale para todos os países sob a jurisdição do tribunal, incluindo o Brasil e  possibilita contestar abordagens policiais racistas na Justiça brasileira. 

As abordagens policiais nos casos argentinos foram justificadas apenas por “atitude suspeita”. Nas duas situações, os registros das detenções não tiveram qualquer detalhamento sobre a motivação das abordagens. No primeiro caso, a falta de justificativas é total. Já no segundo, os policiais alegaram que o “estado de nervosismo” do acusado gerou suspeita, além da incompatibilidade entre seus trajes e o local onde tudo aconteceu.


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