Investigar violações de direitos humanos é um dever dos Estados. É o que dizem entidades internacionais, como a Organização das Nações Unidas. Realizar investigações justas, transparentes e eficazes é, portanto, uma forma de garantir que tais violações sejam processadas de forma correta. Na prática, no entanto, os caminhos são tortuosos e muitas vítimas, especialmente pessoas que fazem parte de grupos em situação de vulnerabilidade social, não têm o direito à verdade respeitado.
A ONU instituiu 24 de março como o Dia Internacional pelo Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas. A data é uma homenagem ao arcebispo salvadorenho Óscar Arnulfo Romero, assassinado no mesmo dia em 1980 por defender os direitos humanos em seu país.
A data insta Estados, como o Brasil, a resolver e responsabilizar as violações de direitos humanos, bem como adotar ferramentas para que estes crimes não sejam repetidos.
O direito à verdade é um princípio de Direito Internacional que deve ser observado pelos Estados, especialmente, em casos de violações de direitos humanos. Significa que há um compromisso em preservar os fatos exatamente como ocorreram e dar publicidade à eles de modo que possibilite a devida responsabilização de quem cometeu a violação de direitos humanos, bem como a prevenção e a não repetição de casos similares, além da reparação pelos danos causados às vítimas e familiares de vítimas dessas violações. A ONU classifica o direito à verdade como um direito inalienável e autônomo e como um direito que não deve sofrer nenhum tipo de restrição ou suspensão, uma vez que está diretamente relacionado a outros direitos.
Existem diversas manifestações e documentos a respeito dessa matéria. Em 2006, por exemplo, o ACNUDH (Escritório do Alto Comissariado da ONU para os direitos humanos) apresentou um estudo no qual reconhece que é dever de cada Estado proteger e garantir os direitos humanos, realizar investigações eficazes sobre violações, com recursos suficientes, com o objetivo de se obter a reparação.
Três anos depois, em um 2009, outro relatório do ACNUDH identificou as melhores práticas para a implementação deste direito, incluindo ferramentas sobre registros, preservação de arquivos institucionais, programas de proteção de testemunhas, medidas especiais para crianças testemunhas e vítimas de violações de direitos humanos, entre outros.
A história do Brasil é marcada por diversos períodos de violência sistêmica contra populações específicas, dentre as quais estão a população negra, indígena, romani, LGBTI+, pessoas com deficiência ou transtornos, mulheres, pessoas empobrecidas e periféricas.
A chamada justiça de transição é um caminho para solucionar o problema. Ela reúne um conjunto de medidas adotadas por um Estado para responder às violações de direitos humanos ocorridas em períodos autoritários ou nos quais ocorreram violências sistêmicas contra grupos marginalizados socialmente perpetradas por ele próprio, inclusive via omissão. O objetivo é restaurar a dignidade das vítimas e das demais pessoas afetadas por essas violações por meio da responsabilização de quem as tenha cometido, da reparação material e moral, da adoção de medidas de não repetição e de processos de reconstrução da verdade e memória.
Os processos que envolvem a justiça de transição são diversos e podem variar de acordo com o processo histórico de cada país, de modo que não há um modelo único. No Brasil e em outros países da América Latina não houve um processo de transição por ruptura em nenhum dos períodos autoritários ou onde graves violações de direitos humanos foram cometidas. Houve, na verdade, uma abertura “lenta e gradual” até que o período ditatorial que compreendeu os anos de 1964 e 1988, especialmente, desse espaço para um regime democrático. Porém, havendo rupturas imediatas ou não, são aplicáveis mecanismos e parâmetros reconhecidos internacionalmente capazes de guiar a implementação de uma justiça de transição.
As comissões da Verdade são exemplos de técnicas de reconstrução da sociedade diante de seu passado violento, seja por contextos de guerra civil, ditaduras, apartheid, violações de direitos de grupos minoritários, entre outros. Atuando juntamente com medidas judiciais, estes mecanismos se tornaram importantes instrumentos em busca de responsabilização por violações de direitos humanos, com um caráter de justiça restaurativa.
Em 2012, o Brasil criou a Comissão Nacional da Verdade, que se ateve aos períodos ditatoriais ocorridos entre os anos de 1946 e a proclamação da Constituição Federal de 1988. Porém, a Lei Federal nº 6.683, de 1979, conhecida como Lei de Anistia, ainda tem impedido uma ampla responsabilização de agentes públicos, sobretudo militares, por violações de direitos humanos, tais como homicídios, desaparecimentos forçados, tortura, violências sexuais, entre outras cometidas durante o regime ditatorial no Brasil.
Nesse contexto, a Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) condenou o Brasil, em 2018, pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog e de outras pessoas durante a ditadura militar. A Corte foi explícita em determinar que, por se tratarem de crimes contra a humanidade, o Estado brasileiro não poderia aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores. O uso amplo da Lei da Anistia também é questionado no STF (Supremo Tribunal Federal) na ADPF 153 e ADPF 320, nesta última, a Conectas participa como amicus curiae.
O episódio conhecido Crimes de Maio de 2006, quando grupos de extermínio e agentes de segurança cometeram assassinatos e outras violações nas periferias de São Paulo, é um exemplo de como o Brasil não respeita o direito à verdade. Quase 16 anos depois desses eventos sombrios, o Estado não responsabilizou os culpados, nem garantiu o direito à reparação e preservação da memória das vítimas e seus familiares.
“Mesmo que a sociedade tente nos fazer esquecer, nos proibir de falar seus nomes, nós continuamos a gritar que nossos filhos têm mãe e a memória é que alimenta essas mulheres para sobreviverem um pouco mais. A verdadeira história do Brasil é de apagamento da memória e de ocultação da verdade. Essa história precisa ser recontada.”, afirma Débora Maria da Silva, fundadora e coordenadora do Movimento Mães de Maio, organização criada para lutar por justiça e pela memória das vítimas destes crimes.