A operação da Polícia Civil na favela de Jacarezinho é marcada por uma série de ilegalidades, de acordo com 64 organizações da sociedade civil e movimentos sociais que, em denúncia a órgãos nacionais e internacionais, demandam esclarecimentos e providências para garantir a apuração, responsabilização e reparação sobre as 27 mortes da chacina mais letal da história da capital fluminense, de acordo com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Além da alta letalidade, a incursão de pelo menos 200 policiais na favela violou outros diversos direitos, como demonstram Defensoria Pública, ativistas e moradores, enquanto os agentes de segurança afirmam que a operação foi bem sucedida e ocorreu dentro dos parâmetros legais. Este discurso encontrou respaldo em manifestações de diversas autoridades, incluindo o governador do Rio de Janeiro Claudio Castro e o presidente Jair Bolsonaro. Policiais e autoridades atacaram ainda ativistas de direitos humanos que criticaram a operação.
Como afirma a denúncia enviada por entidades civis à ONU, à CIDH e ao CNDH sobre o caso, a violência policial é corriqueira e generalizada no Brasil, atingindo especialmente pessoas pobres e negras.
Confira erros e ilegalidades na operação em Jacarezinho que precisam ser investigadas:
Descumprimento da ADPF 635 do STF
A operação descumpriu diversos pontos da liminar concedida em 2020 pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). As decisões, tomadas no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, restringem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro enquanto perdurar a pandemia de covid-19 à situações de excepcionalidade, demandando justificação e aviso prévio ao Ministério Público. A decisão do Fachi ainda afirma que, nos casos excepcionais de operação policial, deve-se “evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro” de modo a preservar de elementos da cena do crime para a realização de perícias. Na Chacina do Jacarezinho, porém, os agentes de segurança levaram ao menos 20 pessoas já mortas ao Hospital Souza Aguiar, de acordo com a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro, o que indica que os policiais retiraram os corpos das vítimas dos locais. A Defensoria Pública denuncia também ainda que houve “desfazimento de cena de crimes.”
O uso de pelo menos dois helicópteros nesta operação também afronta a decisão de Fachin que proíbe o uso deste tipo de aeronave como plataforma de tiros. Outro ponto fundamental é a recomendação para que cuidados especiais sejam tomados em áreas próximas a escolas, creches, postos de saúde e hospitais. Informações mostram que uma unidade de saúde que oferece vacina contra a covid-19 teve que ser fechada por conta da presença dos policiais. Atividades de assistência humanitária, como distribuição de cestas básicas e marmitas, também foram suspensas com a operação.
Na denúncia enviada aos organismos de direitos humanos, as entidades ressaltam que “não se tratam de meros descumprimentos pontuais de julgados da Corte Superior do país. A bem da verdade, está-se diante da absoluta incompreensão, tanto por parte do estado do Rio de Janeiro, quanto por parte do Ministério Público, sobre o real alcance das importantes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF n° 635.”
Na sexta-feira (21), o plenário virtual do STF começou a julgar um recurso apresentado pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) e por ONGs e movimentos sociais participantes da ADPF das Favelas. O pedido é para que o estado do Rio de Janeiro apresente um plano para a redução da letalidade policial. Mas o julgamento foi suspenso nesta segunda-feira (24) após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Execuções extrajudiciais
Moradores relataram que pessoas foram executadas sem que fossem dadas chances para se renderem. Além disso, boletins médicos mostram que parte dos mortos foi atingida por tiros no rosto, costas e abdômen, o que indicaria a existência de execução. Estes fatos levaram o ministro Fachin, no STF, a enviar ofícios para a Procuradoria Geral da República (PGR) e para a Procuradoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro (PGJ) reconhecendo a possibilidade de “execução arbitrária” em Jacarezinho.
Ainda segundo a denúncia supracitada das organizações e movimentos sociais, “informações da imprensa também apontam que a Polícia Civil já teria a identidade de vinte e uma pessoas supostamente envolvidas em atividades ilegais. Se elas já estavam identificadas, os fatos reforçam que a operação foi executada sem o intuito de deixá-las vivas.”
Para justificar as mortes, a polícia tem alegado que as vítimas fatais tinham antecedentes criminais ou envolvimento com o crime, o que não justifica a chacina, já que execuções extrajudiciais são inconstitucionais no Brasil. Este mesmo procedimento foi usado pela polícia para justificar mortes na Chacina da Favela Nova Brasília, nos anos 1990, caso que resultou na condenação do Brasil e do estado do Rio de Janeiro pela CIDH. A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), afirma ainda que alguns mortos não tinham passagem pela polícia e outros já tinham cumprido pena, criticando as declarações da polícia civil que acabam por violar ainda mais o direito e à memória das vítimas e seus familiares.
Tortura de pessoas presas
Em audiência de custódia, pessoas presas durante a operação relataram que sofreram agressões físicas, ameaças e sendo obrigadas pelos policiais a carregarem corpos, de acordo com informações divulgadas pela Defensoria Pública. Os relatos dão conta que a violência ocorreu não apenas na comunidade do Jacarezinho, mas também no traslado para a delegacia.
Seguindo o procedimento padrão, os presos na operação chegaram a fazer exames no IML (Instituto Médico Legal), mas a presença dos policiais na sala pode ter impedido os relatos de agressões. Com isso, a Justiça solicitou novos exames, ainda sem data para ocorrer.
Descumprimento de resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU
Com a chacina de Jacarezinho, o Brasil violou diversos tratados e resoluções internacionais, entre eles a resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU que condena práticas racistas de forças de segurança. Aprovada em junho de 2020, no contexto do assassinato de George Floyd, a medida é considerada histórica e coloca o Brasil como pária na luta antirracista. Especificamente sobre Jacarezinho, o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Direitos Humanos pediu ao Ministério Público que realize uma investigação independente, completa e imparcial de acordo com as normas internacionais.