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18/06/2021

Quais obstáculos os refugiados enfrentam para garantir seus direitos

Governo federal utiliza pandemia de covid-19 para adotar postura discriminatória contra refugiados que buscam acolhimento no país; venezuelanos são os mais afetados

Foto: Lucas Novaes/ ACNUR Foto: Lucas Novaes/ ACNUR

A situação dos refugiados e solicitantes de refúgio que tentam cruzar as fronteiras brasileiras neste período da pandemia de covid-19 tornou-se ainda mais difícil, especialmente para as pessoas oriundas da Venezuela. Se de um lado o governo federal minimiza a gravidade da doença, por outro a utiliza como suposta justificativa para adotar uma política discriminatória, que afeta especialmente os grupos de migrantes em situação de maior vulnerabilidade social. 

O cenário aponta para o descumprimento de leis internacionais e nacionais, incluindo a Lei de Migração (13.445/2017). Aprovada em 2017 pelo Congresso Nacional, ela foi concebida a partir dos princípios de não discriminação e de tornar o migrante um sujeito de direitos, assim como preconiza a Constituição. Construída com ampla participação da sociedade civil, ela rompe com a tese da migração como um risco à segurança nacional e assegura condições dignas para quem quer viver no país. 

Às vésperas do Dia Mundial do Refugiado, celebrado no dia 20 de junho, entenda os principais obstáculos que migrantes e refugiados enfrentam atualmente no Brasil para terem seus direitos garantidos.

Fronteiras fechadas 

Desde o início da pandemia, em março de 2020, o Brasil publicou 30 portarias que restringem a entrada de migrantes no país. Estas portarias permitem, entre outras coisas, a deportação imediata de pessoas, ainda que elas tenham direito ao refúgio. No Brasil, migrantes oriundos de locais onde há crises humanitárias ou grave e generalizada violação de direitos humanos, como guerras, bem como aqueles que sofrem perseguições políticas, étnicas ou religiosas, têm direito ao refúgio assegurado por lei. 

“O país fez uso da pandemia para endurecer as regras e violar direitos já assegurados, fundamentados pela Lei de Refúgio  [Lei 9.474/97] e pela Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados [1951], ratificada pelo país”, diz Camila Asano, diretora de programa da Conectas.

Tratamento discriminatório 

Em julho de 2020, em nova portaria, o governo federal reabriu  as fronteiras aéreas para turistas. Entretanto, as vias terrestres e aquaviárias — canais mais frequentemente acessados por solicitantes de refúgio e migrantes em situação de vulnerabilidade — continuaram fechadas. Para Asano, esta postura reforça a tese de que a postura do governo é discriminatória.

“Fica evidente que o governo fez de tudo para flexibilizar o turismo e a entrada de migrantes com mais recursos, que têm acesso a passagens aéreas, ao mesmo tempo em que vetou a entrada de migrantes que verdadeiramente estavam buscando sua sobrevivência no Brasil, sobretudo venezuelanos”, complementa Asano.

Em carta enviada em agosto de 2020 a autoridades do Executivo federal, mais de 20 organizações, entre elas a Conectas, a Missão Paz e a Cáritas, alertavam que o modelo de controle migratório adotado para evitar a disseminação do novo coronavírus possuía dispositivos ilegais, que restringiam direitos de migrantes e refugiados. 

Acesso à saúde 

Até o momento, porém, as fronteiras continuam fechadas para quem deseja pedir refúgio. Nas portarias do governo, assinadas pelos ministérios da Casa Civil, da Justiça e Segurança Pública e da Saúde, aparece a chamada “inabilitação de refúgio” que complica ainda mais a situação. Por meio deste dispositivo, quem cruza as fronteiras do país não pode sequer solicitar um protocolo de refúgio na Polícia Federal, primeiro passo para se tornar refugiado.  

Para Paolo Parise, padre e migrante italiano e um dos responsáveis pela ONG Missão Paz, que desde a década de 1930 acolhe imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo, a “inabilitação de refúgio” é um artifício inédito e sua utilização para evitar a disseminação do vírus não se sustenta. Isso porque as pessoas continuam a cruzar as fronteiras, de forma irregular, sem controle sanitário e, uma vez dentro do país, não recebem apoio estatal, o que pode aumentar os números de contágio pela covid-19.  

A decisão em fechar as fronteiras terrestres neste contexto de crise sanitária não tem respaldo da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Em fevereiro de 2021, o principal órgão de regulamentação sanitária do país afirmou à Conectas que não houve orientação para proibir de forma segregada a entrada de pessoas oriundas de países que fazem fronteira com o Brasil durante as restrições impostas pela pandemia. 

Recentemente, também o CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos) publicou uma recomendação em que afirma ser possível receber estas pessoas seguindo protocolos sanitários como triagem, testagem e quarentena. Com esta nova recomendação, já são três manifestações do Conselho que mostram preocupação sobre os impactos das portarias federais nos direitos humanos de migrantes e refugiados neste momento de pandemia. 

Estas posições do CNDH estão alinhadas ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, que vêm reiterando a não contradição em proteger os direitos dos refugiados e garantir a saúde pública, ainda que adotando medidas severas para conter o vírus.

A situação dos venezuelanos  

As portarias já mencionadas são especialmente discriminatórias com a população de migrantes e refugiados oriundos da Venezuela, pessoas que não fazem parte do grupo que se beneficia das exceções previstas nas publicações do governo federal. Diferente de migrantes de outros lugares, este grupo, por exemplo, não tem permissão de entrar no país caso tenham parentes residentes. “É um momento muito difícil para os migrantes venezuelanos. Inúmeros não conseguem entrar e os que conseguem, ficam de forma irregular”, diz Parise. 

“Em reuniões virtuais realizadas pela missão do CNDH em curso em Pacaraima (RR) e Boa Vista (RR), já temos evidências dos pontos problemáticos da portaria de fechamento de fronteiras, com a Polícia Federal tendo que encontrar soluções criativas perante as situações humanitárias na fronteira”, relata Asano, que também é consultora do CNDH.

O caso da Casa São José, ponto de acolhida administrado por entidades religiosas, ilustra este cenário em que as portarias prejudicam os direitos dos migrantes. Em março deste ano, a Polícia Federal e outros agentes de segurança invadiram o abrigo e desalojaram mais de 70 pessoas, incluindo mulheres gestantes e crianças. A diretora do local, Ana Maria da Silva, freira da congregação Irmãs de São José, foi detida pela polícia para prestar esclarecimentos. 

Antes disso, ainda em abril de 2020,  outra operação removeu um grupo de venezuelanos em Boa Vista (RR). Organizada  pela GCM (Guarda Civil Metropolitana), a remoção foi feita, sem ordem judicial, a pedido da  da Secretaria Municipal do Meio Ambiente do município para impedir aglomeração em uma área ambiental. Utilizando retroescavadeiras, os agentes destruíram as moradias provocando o despejo de diversas pessoas, incluindo 31 crianças.


Em ano de pandemia, número de refugiados aumenta 4% no mundo, aponta ACNUR 

Apesar da pandemia de covid-19, o número de pessoas fugindo de guerras, violência, perseguições e violações de direitos humanos em 2020 atingiu 82,4 milhões, de acordo com o relatório anual “Tendências Globais”, do ACNUR, divulgado na sexta-feira (18). A nova cifra é 4% maior que os 79,5 milhões registrados ao final de 2019. De acordo com o documento, 20,7 milhões de refugiados sob o mandato do ACNUR, 5,7 milhões de refugiados palestinos (sob o mandato da agência UNRWA) e 3,9 milhões de venezuelanos estiveram em deslocamento fora do seu país no ano de 2020. 

Veja os principais dados do relatório “Tendências Globais 2020”: 

  • 82,4 milhões de pessoas forçadas a se deslocar em todo o mundo (79,5 milhões em 2019) – crescimento de 4%;
  • 26,4 milhões de refugiados (26,4 milhões em 2019), incluindo:
  • 20,7 milhões de refugiados sob o mandato do ACNUR (20,4 milhões em 2019);
  • 5,7 milhões de refugiados palestinos sob o mandato da UNRWA (5.6 milhões em 2019);
  • 48 milhões de deslocados internos (45,7 milhões em 2019);
  • 4,1 milhões de solicitantes do reconhecimento da condição de refugiado (4,1 milhões em 2019);
  • 3,9 milhões de venezuelanos deslocados fora do seu país (3,6 milhões em 2019).

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