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27/06/2023

Políticas públicas para população trans ainda são insuficientes, afirma representante da Antra

Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), aplaude iniciativas do governo federal, mas cobra ações efetivas, e critica discurso feminista antitrans



Para Bruna Benevides, referência na luta pelos direitos humanos, o governo Lula precisa demonstrar ações efetivas de proteção e garantia de direitos à população LGBTQIA+, sobretudo à população trans e travesti. Como lembra a secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), apesar da criação de importantes órgãos como o Conselho Nacional de Combate a Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT) e a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, o que se vê de concreto ainda é pouco. 

“Avançou-se muito, e a gente aplaude. Mas ainda vemos um cenário insuficiente diante da demanda, que ainda é de cunho muito primária”, pontuou Benevides à Conectas, reforçando a necessidade de pessoas aliadas que potencializem suas vozes, dando mais visibilidade às ações afirmativas do que à violência sofrida por essa parcela da população. “A divulgação de um vídeo de violência ganha mais visualizações do que campanhas como a que fizemos recentemente sobre a situação de mulheres trans dentro do sistema prisional [Dossiê: “Um olhar acerca do perfil de travestis e mulheres transexuais no sistema prisional”]. É algo que precisa mudar, e vamos mudar com pessoas que têm compromisso com a nossa luta.”

No mês do Orgulho LGBTQIA+, a representante da Antra conversa com a Conectas sobre os avanços e pontos de atenção do governo Lula, os perigos do discurso feminista antitrans e a importância da visibilidade em uma sociedade pautada pelo conservadorismo. 

Conectas – Em um discurso na Câmara dos Deputados, no evento que marcou os 100 dias do governo Lula, você afirmou: “Presidente Lula, eu te amo, mas você precisa abraçar as pessoas trans”. Como a Antra avalia o governo até agora?

Bruna Benevides – Acho que é importante mencionar que a pauta LGBTQIA+ nunca esteve na centralidade das ações de nenhum governo. Especificamente neste governo — o qual a comunidade LGBTQIA+, os movimentos e todas as formas de organização coletiva se empenharam para ajudar a eleger —, nós temos tentado manter uma postura crítica. Avançou-se muito, e a gente aplaude o avanço nas questões de enfrentamento à violência de gênero e ao racismo, fortalecimento do Ministério das Mulheres, surgimento do Ministério da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas, além da criação de secretarias, entre as quais, a LGBTQIA+. Mas ainda vemos um cenário insuficiente diante da demanda, que ainda é de cunho muito primária. 

Por um lado, temos um governo que tem um canal aberto de diálogo, e essa é a principal marca, o que é muito favorável e legítimo para nossa atuação. Mas, ao mesmo tempo, nos preocupa, porque já se vão seis meses e os acenos mesmo simbólicos por parte do Executivo não aconteceram — excetuando-se explicitamente o Ministério dos Direitos Humanos. E a gente considera que é muito importante que o governo assuma a responsabilidade e o compromisso público com as pessoas e a vidas das LBGTQIA+ sem qualquer melindre, em especial em momentos em que há uma agenda que se centraliza contra os direitos das pessoas trans. Entendemos que esses acenos são tão importantes quanto as ações práticas que nós também queremos que ocorram.

Há preocupações, por exemplo, em relação ao baixíssimo, ou quase inexistente, orçamento destinado à Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. Também acreditamos que todos os ministérios devam ter comitês, grupos de trabalho, seja o nome que queiram chamar, que possam atuar sob a perspectiva sexual e de gênero, sobretudo para além da cisgeneridade. 

Conectas – Mesmo com essas lacunas, é possível afirmar que as perspectivas são boas para a população LGBTQIA+, especialmente as pessoas trans e travestis?

Bruna Benevides – Do campo simbólico e do campo de construções de espaços para pensar a política, sim. E aí falo do próprio Conselho Nacional LGBTQIA+ [Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT)], como um importante espaço de participação social. O que nos preocupa são as ações efetivas. 

Até agora nenhuma ação efetiva se concretizou nesse sentido de enfrentar os altos índices de violência contra a comunidade LGBTQIA+, em especial a população trans. O Brasil tem um lastro de  omissão diante desses dados de violência, e a gente acha que 2023 já está perdido. Ou seja, acreditamos que em 2023 o Brasil vai continuar sendo o país que mais mata a população trans no mundo.

Conectas – Esse tipo de violência cresceu no último governo. Na sua avaliação, qual foi o maior impacto do governo Bolsonaro para a população trans e travesti?

Bruna Benevides – É curioso mencionar que as conquistas mais recentes que tivemos aconteceram nesse mesmo período, marcando, obviamente, que elas não têm qualquer relação com o governo Bolsonaro, o qual elegeu uma agenda antitrans e anti LGBTQIA+ para atuar. O impacto [desta agenda]  é um acirramento do processo de marginalização, vulnerabilização e criminalização das existências das dissidências sexuais e de gênero, e das diversidades corporais. Se hoje estamos reivindicando acenos simbólicos, no governo anterior, esses acenos trouxeram impactos muito significativos e violentos para a população LGBTQIA+. Não à toa, sobretudo durante a pandemia, observamos um agravamento seríssimo na saúde mental da nossa população. 

Assim como vimos também um aumento da violência direta e a paralisação das políticas de saúde para a população trans, além de diversos outros retrocessos, como o impedimento de editais para cultura. Enfim, foi uma atuação que pretendeu (e conseguiu, em certa medida) promover uma completa invisibilização da agenda e da luta de pessoas trans e LGBTQIA+, no geral, nesse último período pós-golpe. 

Conectas – Neste mesmo mês do Orgulho LGBTQIA+, aconteceu uma audiência da Comissão de Infância, Adolescência e Família na Câmara dos Deputados, cujo teor transfóbico foi denunciado pela deputada federal Erika Hilton. Na sua visão, por que os políticos conservadores realçam esse discurso antitrans?

Bruna Benevides – Nesses governos autoritários, negacionistas, com alta interferência de religiões monoteístas — mas, sobretudo, o cristianismo, como é o caso do ocidente — a existência de pessoas LGBTQIA+ é colocada como algo antinatural, por isso devem ser demonizadas, combatidas e criminalizadas. Então acredito que o último desafio da humanidade, em termos de romper com estruturas de violência, é garantir os direitos da população trans e LGBTQIA+. 

No caso da população trans, ainda tem um agravante que é quando a igreja católica cria o espantalho da ideologia de gênero, nos anos 1990. Essa é uma pauta antigênero e antifeminista que vem ganhando contornos antitrans. 

Durante o mesmo período, ao redor do mundo, se fortalecem outros movimentos antitrans, inclusive dentro do campo progressista, dentro da esquerda, dentro dos movimentos feministas, o que nos mostra então que a pauta antitrans talvez seja a que mais consegue agregar grupos divergentes. 

Conectas – Acredita que esse discurso antitrans dentro do feminismo pode ser tão nocivo quanto aquele que vem da extrema direita?

Bruna Benevides – Sobretudo porque a própria extrema direita e outros grupos têm se apoderado do discurso de feministas para alavancar essa agenda, e, ao mesmo tempo, essas mesmas feministas, de certa forma, estão servindo aos interesses da extrema direita, fazendo alianças com esses grupos para alcançar seus objetivos no campo da esquerda. É um ecossistema muito complexo e sofisticado, que parte de dois campos opostos da política.

Além disso, esse discurso antitrans tem aliados muito poderosos no mundo todo, como Elon Musk e JK Rowling. A própria relatora especial da ONU sobre Violência contra as Mulheres [Reem Alsalem], que lamentou a aprovação de uma lei sobre transição de gênero na Espanha, tem atuado para tentar impedir os avanços, e também negar as garantias e direitos da população trans, o que tem sido um problema dentro da própria estrutura da atuação internacional. 

Conectas – Em seu discurso na Câmara dos Deputados, você também afirmou: “A gente fala de morte para gerar vida”, chamando atenção para a visibilização. Qual é a importância da visibilidade trans e travesti em uma sociedade como a do Brasil?

Bruna Benevides – É importante para garantir as nossas vidas. Se não tivéssemos conseguido alcançar a visibilidade que temos hoje — ainda que ela seja pautada 80% pela violência — acredito que estaríamos em um cenário ainda mais alarmante. Por isso, nós precisamos de um compromisso para que essa visibilidade se torne uma visibilidade positiva, o que depende também dos acenos simbólicos, dos investimentos, da destinação de recursos, da efetiva participação dos movimentos transpoliticamente mobilizados para a construção das políticas públicas que possam erradicar em definitivo essa violência. Nossa visibilidade ainda é muito limitada a produções de audiovisual, marcas, sobretudo no mês do Orgulho, mas ela precisa dar um passo adiante. 

Essa minha frase significa isso: quanto mais a gente consegue visibilizar e militar falando das mortes violentas e das mortes em vida, inclusive dos apagamentos, mais temos a possibilidade de criarmos empatia, para que as pessoas possam se comover, e se converter em pessoas que vão atuar na defesa das nossas vidas, antes mesmo da defesa dos nossos direitos.

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