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17/08/2017

Pela federalização dos “crimes de maio”

Artigo de Rafael Custódio e João Paulo de Godoy publicado no Jota

CPI do Assassinato de Jovens (CPIADJ) realiza audiência pública interativa com a participação de convidados, para apresentação do relatório. 

Mesa: 
Mães de Maio, Débora Maria da Silva;
Paulo Renato Campos. 

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado CPI do Assassinato de Jovens (CPIADJ) realiza audiência pública interativa com a participação de convidados, para apresentação do relatório. Mesa: Mães de Maio, Débora Maria da Silva; Paulo Renato Campos. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Frente a parâmetros internacionais, a gravidade dos altos índices de letalidade policial no Brasil é explícita. A pesquisa A letalidade da ação policial: parâmetro para análise chegou a resultados preocupantes, concluindo que Quando se analisa o conjunto de indicadores […], chega-se a conclusão de que, em São Paulo, a violência letal é utilizada como forma de controle social coercitivo […]. Pelos dados analisados pode-se afirmar que, no estado de São Paulo, as polícias, em sua ação rotineira e em nome do estrito cumprimento do dever, mais do que impedir a ocorrência do crime, executam sumariamente pessoas […].

O excessivo número de mortes provocadas pela polícia brasileira, em especial a paulista, foi alvo de preocupação até mesmo da ONU, como podemos observar no relatório produzido pelo Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston. Após inspeção no país e diante da confirmação dos dados sobre a altíssima letalidade policial no Brasil, o Relator chegou à conclusão de que execuções são praticadas pela polícia não somente em serviço, mas também fora dele, com grupos de extermínio. Assim, enquanto a taxa de homicídios oficial de São Paulo diminuiu drasticamente nos últimos anos, inversamente, o número de mortos pela polícia aumentou: para a ONU, outro indicativo de que a polícia executa extrajudicialmente possíveis suspeitos ao invés de prendê-lo.

A conivência do sistema de justiça contribui para uma cultura de impunidade e desrespeito a lei, posto que os policiais sabem que podem operar à margem das normas não só no serviço, com os “autos de resistência”, mas também fora dele. A situação de violência é tamanha que o relatório afirma: “O sistema atual é um cheque em branco para as mortes praticadas pelos policiais”.

De acordo com a ONU, os crimes de maio de 2006, na cidade de São Paulo, seriam um caso onde todas as irregularidades acima descritas estariam presentes – o que reafirmarmos no pedido inicial de deslocamento de competência feito, em 2009, pela Conectas, à Procuradoria Geral da República e, agora, através da interposição de amicus curiae nos autos do IDC n.º 9.

A Constituição Federal de 88, em seu artigo 109, § 5º, prevê dois requisitos para a suscitação do incidente de deslocamento de competência (“federalização”): (1) hipótese de grave violação de direitos humanos e (2) o intuito de efetivar obrigações decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte. Além deles, o E. Superior Tribunal de Justiça consignou, em todos os julgamentos de IDC´s, a necessidade de um terceiro elemento: (3) a subsidiariedade, isto é, quando os órgãos do Estado-membro não forem capazes de tomar as devidas providências e diligências no caso.

No pedido inicial de federalização e no amicus recém apresentado, comprovamos, fartamente, o atendimento de todos os requisitos para o deslocamento de competência, embasando-os cientifica e juridicamente. Todos os seus elementos foram analisados, descritos e enquadrados nos requisitos conforme os critérios estabelecidos por este Egrégio Superior Tribunal de Justiça.

Causa repulsa, vale destacar, que nos autos do IDC n.º 9, o MP-SP diz que não há razoabilidade para se apreciar novamente o caso, afirmando que “especialmente no âmbito penal, em que o transcurso do prazo apaga provas, fomenta a prescrição e não raras vezes leva ao esquecimento dos crimes e à inutilidade das penas”. Ora, deixar de proceder investigações com base nas dificuldades materiais beira a omissão quanto a função institucional do Ministério Público – por si só uma grave violação de direitos humanos. E pior, alegar o “esquecimento dos crimes” como motivo para não os investigar demonstra o desprezo pelo sofrimento diário dos familiares, que, diga-se, jamais “esqueceram” os crimes e ainda esperam que a Justiça aponte os autores das execuções de seus entes queridos. E encerrando qualquer interpretação divergente, lembramos que a Constituição Federal de 88, em seu art. 5º, inciso XLIV, estabelece que constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Defender a “inutilidade das penas” torna-se, como relatado pela ONU, um gesto de anuência para com os assassinatos. Causa espanto que, linhas depois, na mesma manifestação, o MP-SP defenda a manutenção de sua posição como titular exclusivo da persecução penal no caso, alegando que “se alguma prova materialmente nova realmente existisse a competência para eventual ação penal seria da Justiça Estadual, pois o Ministério Público de São Paulo é o seu legítimo titular”. Ora, se abertamente se posiciona contra as novas investigações, por que em momento seguinte deseja a responsabilidade exclusiva pela condução delas?

Para além destas perguntas, questionamos: qual seria o prejuízo causado pelo deslocamento de competência desse caso? Qual seria o prejuízo para a sociedade brasileira? Por que a ânsia de se enterrar definitivamente esse grave episódio da história paulista e que restou incógnito?

Essa ação, para além dos vários interesses envolvidos neste caso, exige do Poder Público que trate na mesma medida, com respeito e dignidade, os direitos fundamentais de todo cidadão e cidadã. Que haja uma apuração real e adequada, com lisura, transparência e boa-fé e não de modo meramente protocolar e vazio, sustentando aparências. E que, dentro do devido processo legal, se responsabilize os envolvidos, seja quem for, independentemente de posição social ou cargo público que ocupe.

Por fim, vale destacar que o IDC encontra-se agora pronto para ser julgado, e esperamos que o relator do caso no STJ, Ministro Jorge Mussi, demonstre sensibilidade e apresente com urgência o caso para julgamento, determinando a reabertura das investigações e consequente deslocamento de competência.

  • Leia o original aqui.

 

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