De acordo com levantamento do Conselho Federal de Medicina, publicado no inicio de junho, o Brasil possui 523.528 registros ativos de médicos em seus 27 Conselhos Regionais de Medicina. Este número representa uma média de 2,5 profissionais para cada mil habitantes, levando em conta a população brasileira de cerca de 212 milhões de pessoas.
O dado é superior ao registrado em países como Japão e México, ambos com 2,4 médicos para cada mil habitantes, e fica logo abaixo de EUA (2,6), Canadá (2,8) e Reino Unido (2,9).
No entanto, como aponta a própria entidade, “a ausência de políticas públicas tem feito com que esses profissionais estejam mal distribuídos pelos Estados e regiões” do país.
Enquanto cada milhar de pessoas no Distrito Federal conta com 5,1 médicos, o Pará oferece apenas 1 profissional de medicina para esta mesma quantidade de habitantes. No Sudeste, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo estão acima da média nacional. É o oposto no Nordeste, onde todos os Estados estão abaixo da média brasileira. O quadro se repete no Norte, onde todos os Estados possuem menos de 1,8 médico por mil/hab, com exceção de Tocantins (2,0), que ainda assim não alcança o quadro nacional.
Médicos formados no exterior
Uma solução para amenizar a falta de médicos na maior parte do Norte e Nordeste seria recorrer a profissionais – brasileiros e não-brasileiros – que moram no Brasil mas que se formaram no exterior.
Para isso, de acordo com o MEC (Ministério da Educação), todos aqueles que obtiveram diploma de graduação em instituições estrangeiras reconhecidas no país de origem devem ter seus diplomas revalidados e a principal forma de se fazer isso no país é prestando o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos, mais conhecido como Revalida.
Porém, o último Revalida, que deveria ser anual, foi realizado em 2017. Neste ano de 2020, o MEC anunciou que em julho publicaria o edital para a prova, que seria realizada em outubro. Encerrado o mês, não houve a publicação do documento e não há qualquer previsão anunciada pela Educação.
No último exame, há 3 anos, 963 profissionais tiveram seus diplomas de medicina revalidados. Em 2017, 7.379 se inscreveram no exame.
Revalidação de diplomas em universidades
A revalidação de diplomas também pode ser feita pelas universidades públicas, mas a enorme maioria das instituições acadêmicas prefere orientar os interessados a prestar o exame nacional oferecido pelo MEC, que já não ocorre há três anos.
As exceções são a UEMA (Universidades Estadual do Maranhão) e a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), que elaboram seus próprios exames de revalidação para diplomas de médicos.
Por conta da pandemia e a demanda por médicos, a UEMA abriu um processo nacional de revalidação entre 8 a 15 de maio deste ano. A lista dos inscritos, publicada no dia 22 do mesmo mês, contava com 4.356 pessoas.
Além da prova, os interessados deveriam apresentar documentação de formatura a uma comissão formada por médicos para avaliar sua procedência. No entanto, o Conselho Regional de Medicina do Maranhão emitiu uma resolução orientando profissionais de medicina a se absterem de participar desta comissão. De acordo com a nota do CRM, o processo estabelecido pela universidade desrespeitaria a Lei do Revalida e a ética médica.
Emergência de saúde, medidas de emergência
Organizações da sociedade civil, como a Conectas, além das Defensorias Públicas de alguns Estados e da União, vêm pressionando governos para dar celeridade aos processos e pedindo para que haja uma flexibilização na legislação para a atuação de médicos formados no exterior durante a pandemia.
“É desesperador pensar que nós temos profissionais no país que poderiam estar ajudando a salvar vidas, mas que por impedimentos burocráticos são impedidos de exercer a profissão. É preciso haver uma flexibilização. Situações urgentes e emergentes como esta requerem medidas temporárias, excepcionais e urgentes”, afirma Camila Asano, diretora de programas da Conectas.
“A ineficiência do Estado brasileiro em não realizar o Revalida desde 2017 levou o país a menosprezar por pelo menos 3 anos o reforço de médicos formados no exterior no nosso já sucateado sistema público de saúde. Agora, por conta da pandemia, têm sido realizadas medidas excepcionais, como a antecipação de formatura de estudantes de medicina. Por que não adotar medidas também para incorporar médicos migrantes e refugiados no esforço coletivo de combate à Covid-19?”, questiona Asano.
Para Camila, o descumprimento do prazo anunciado pelo próprio MEC para publicar edital da prova do Revalida é mais um exemplo do descaso do governo Bolsonaro com o combate à Covid-19. A pandemia evidenciou a falta de médicos em regiões como o Norte e Nordeste, isso sem falar do número de médicos que estão afastados por contaminação ou por pertencerem a grupos de riscos.
A legislação da pandemia já oferece previsão legal no Brasil para isso. A Lei de Quarentena, publicada em 6 de fevereiro deste ano, logo quando foram registrados os primeiros indícios da contaminação por Covid-19 no país, permite a adoção de medidas excepcionais e que, inclusive, podem ser adotadas por entes federativos (Estados e municípios), sem a anuência do governo federal.
Exemplos nacionais e internacionais durante a pandemia
Diante da necessidade de ações rápidas e urgentes imposta pela pandemia, uma série de países já flexibilizaram em diferentes formas suas legislações e desburocratizaram processos para contratação e a atuação de médicos formados em outros países.
É o caso do Canadá, da Alemanha, do Peru, e dos EUA, em alguns de seus Estados. Até o momento, o governo federal brasileiro ainda não adotou nenhum tipo de medida para viabilizar a atuação desses profissionais.
Mesmo nacionalmente já há iniciativas ainda que isoladas. A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou em maio a contratação excepcional e temporária de profissionais de medicina sem o certificado de revalidação durante a pandemia.
Em Sergipe, a decisão veio da Justiça Federal, que autorizou a prefeitura de Aracaju a contratar médicos formados no exterior sem o Revalida.
O caso de Roraima
De acordo com dados do Ministério da Saúde, Roraima possui 33.151 casos de pessoas infectadas com o novo Coronavírus, o que deixa o Estado mais de 4 vezes acima da taxa de incidência nacional. Já são 513 mortes, contabilizadas até 3 de agosto, com quase o dobro da taxa nacional de mortalidade.
Apesar disso, um Hospital de Campanha construído pelo Exército para realizar atendimentos de emergência a vítimas da pandemia e ajudar a desafogar o já superlotado Hospital Geral de Roraima foi inaugurado somente no dia 19 de junho após ter tido sua inauguração adiada durante meses por falta de médicos. Desde abril, 80 leitos já estavam prontos.
Para sua operação completa seriam necessários, ao menos, 126 profissionais, porém, o Estado, que tem a média de 1,6 médicos para cada mil habitantes, não consegue atender a demanda.
O mais recente edital da Secretaria da Saúde, publicado em maio, para a contratação de 600 médicos (que possuem CRM e/ou Revalida) teve pouco mais de 20 interessados.
Diante do agravamento do contágio, em especial na capital Boa Vista, e da baixa oferta de profissionais devidamente registrados nos conselhos de medicina, o governo estadual firmou acordo com o Ministério Público e com a Defensoria Pública se comprometendo a contratar de forma direta os 126 profissionais necessários para o funcionamento pleno do hospital, dispensando o Revalida, conforme prevê a Lei da Quarentena.
O Sindicato dos Profissionais de Medicina, porém, apresentou recurso e conseguiu que a Justiça proibisse as contratações de profissionais sem o certificado do exame nacional. Dias depois, nova decisão judicial permitiu as contratações desde que o Sindicato dos Médicos e o Conselho Regional de Medicina não conseguisse apresentar uma lista com 94 profissionais habilitados para atuar. O que, de fato, não ocorreu.
Por fim, a contratação desburocratizada de médicos migrantes, por parte do governo estadual de Roraima, autorizou que o hospital de campanha fosse finalmente inaugurado e esteja atendendo a população local acometida pela Covid-19.
Entendimento no STF e base constitucional
A discussão sobre a constitucionalidade da contratação de médicos formados no exterior foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal em 2017 quando apreciou a ADI 5035 sobre o programa Mais Médicos, que trouxe médicos cubanos para atuarem no país por meio de uma parceria entre o governos do Brasil, Cuba e Opas (Organização Panamericana de Saúde).
Naquela ocasião, o STF julgou constitucional a contratação de médicos estrangeiros sem a revalidação de diploma e inscrição em conselho profissional em situação excepcional, de emergência de saúde. O Pleno do Tribunal afastou a alegação de que seria exigência constitucional a revalidação de diplomas e afirmou que o programa era “opção de política pública válida para tentar minimizar a dificuldade de se fazer chegar a possibilidade de atendimento médico aos locais mais distantes.Com esteio nos arts. 3º, III (2); 170 (3) e 198 (4) da CF/1988, verificou-se forma para que se pudesse levar o serviço médico a todos os rincões”.
Mais recentemente, no início da crise do coronavírus no Brasil, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a competência de Estados e Municípios para tomar medidas de combate à pandemia. Isso ocorreu diante de posturas do Governo Federal de não apenas negar apoio, como efetivamente se opor a elas.
Naqueles julgamentos, o Supremo afirmou que independentemente de autorização do governo federal, os entes federativos eram competentes para adotar as medidas necessárias para garantir o direito à vida e à saúde da sua população na pandemia de Covid-19, sem autorização do Governo Federal.
A partir de então, muitos Estados e municípios tomaram iniciativas como a de, excepcionalmente, contratar médicos formados no exterior (inclusive não-brasileiros), já que localmente não havia como suprir essa demanda. Independentemente da competência para regulamentar a profissão de médico no país, a atual situação de pandemia, o aspecto constitucional de extrema necessidade na garantia do direito fundamental à saúde, deveria prevalecer.
Algumas ações judiciais foram propostas com a finalidade de autorizar, em caráter temporário e excepcional, essa relevante força de trabalho em nosso país. Uma foi uma ação proposta pela Defensoria Pública da União perante a Seção Judiciária de São Paulo.
Nessa ação a Conectas apresentou pedido de habilitação como assistente e contribuiu com dados demonstrando a distribuição desigual de médicos no país, a tendência de crescimento de casos e vítimas da Covid-19, o fato de a pandemia estar se alastrando para o interior do estados e que o Governo Federal estava sendo ineficiente no uso de seus recursos. Assim, demonstrou que a contratação de médicos formados no exterior seria a medida mais adequada para enfrentar a pandemia amenizar as lamentáveis mortes já ocorridas e que ainda podem ocorrer.