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28/06/2021

Os religiosos LGBTI+ e a importância da disputa por espaços

Diversidade na fé: o discurso que coloca em lados opostos a religião e pessoas dissidentes da norma de sexualidade e de gênero não deve ser entendido como único

Religiosos LGBTI+ e aliados na Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo, no ano de 2019. Foto:  Julio Cesar Silva/ Divulgação/KOINONIA Religiosos LGBTI+ e aliados na Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo, no ano de 2019. Foto: Julio Cesar Silva/ Divulgação/KOINONIA

Para a cantora e atriz Linn da Quebrada, o sagrado é um dos muitos espaços dos quais as travestis são excluídas. “Eu gosto muito de pensar que a palavra Deus é formada de ‘eus’. Justamente por isso, só posso acreditar em um Deus que também acredite na minha existência”, pontuou ela, em uma entrevista ao jornal O Globo. “Busco construir na música um espaço para que a gente repense o sagrado, como um processo de cura dos nossos corpos, de cuidar do nosso espírito.”

De diferentes formas, em diferentes contextos, além de travestis e pessoas trans, gays, lésbicas, bissexuais, não binárias e outras dissidências das normas de sexualidade e de gênero também sentem o impacto da exclusão do sagrado. 

De acordo com a assessora do programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas, Maryuri Grisales, que lidera a iniciativa de Mobilizações Religiosas e Agenda de Direitos da organização, é grande a influência do discurso LGBTfóbico vindo de lideranças religiosas em nome de uma autoridade divina. “Quando alguém diz que você vai para o inferno por conta da sua conduta sexual, muitas pessoas podem não ligar, mas, no fundo, há uma conexão com o universo simbólico religioso que foi construído ao longo da vida, na família, na escola, no seu dia a dia. Esse discurso gera a ideia de que você está totalmente fora da lei universal, fora da fé, fora da norma e do que é considerado correto”, reflete. 

Segundo Grisales, esses discursos têm efeitos concretos que se mostram nos números de assassinatos e de suicídios de pessoas LGBTI+, de violência doméstica, na dificuldade de arranjar emprego. Frequentemente, essas questões estão relacionadas com narrativas de rejeição da existência e da sacralidade destas vidas.

Em 2020, segundo o relatório mais recente do Grupo Gay da Bahia, 237 pessoas LGBTI+ sofreram mortes violentas no Brasil, sendo que 94,5% destas mortes ocorreram por homicídio e 5,5%, por suicídio. Em números absolutos foram registradas as mortes de 161 travestis e pessoas trans, 51 gays, dez lésbicas, três homens trans, três bissexuais e dois heterossexuais confundidos com gays. 

Impacto fundamentalista

“Eu sou uma mulher de candomblé e lésbica. Só sou casada porque o STF garantiu a possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo”, recorda a advogada Laina Crisóstomo, covereadora da mandata coletiva Pretas por Salvador, formada por mulheres evangélicas e de candomblé. “No Brasil, as conquistas LGBTI+ têm se dado pelo STF, que não é o trâmite natural da proposição e do processo legislativo. Isso, sem dúvida, é um reflexo de como o discurso político da bancada fundamentalista reverbera em nossas vidas.”

Para a covereadora, é preciso desconstruir a falsa dicotomia que opõe a religiosidade às vivências dissidentes de sexo e gênero. “Não há contradição entre ser religioso e ser LGBTI+, o que existe é a necessidade de a gente combater os discursos que nos oprimem. Não dá para ser de uma religião se ela tenta me colocar de volta no armário”, acredita. “Precisamos ser acolhidos em nossa religiosidade, porque isso tem a ver com a nossa ancestralidade, nossa espiritualidade.” 

Cris Serra, que coordena a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, lembra de violências e agressões comuns realizadas em ambientes católicos, como orações de libertação e exorcismos. “Esse discurso constrói a ideia de que a pessoa LGBT é imunda, indigna de acessar o amor e de ser amada por Deus”, afirma. “É uma violência simbólica emocional, espiritual e psicológica devastadora.” 

Para Serra, apesar da violência religiosa ser real, é importante disputar os espaços de poder religioso. “Precisamos perceber que os campos eclesiais são mais diversos do que essa homogeneidade que os discursos oficiais tentam vender. Comprar essa suposta homogeneidade só serve aos interesses das autoridades que querem impor esses discursos como única verdade possível dentro da Igreja, apagando vozes que pensam e sentem de forma diferente.”

Protestantes contra a norma

No contexto protestante – composto por diferentes segmentos, incluindo as igrejas evangélicas -, também é possível encontrar espaços para exercer uma fé baseada na diversidade. “Uma das maiores conquistas da Reforma Protestante é o entendimento de Lutero de que cada pessoa deve ter sua própria experiência com o texto bíblico. Então, não existe uma única forma de ser evangélico no mundo”, lembra o reverendo Bob Luiz Botelho, coordenador geral do grupo Evangélicxs pela Diversidade. 

Assim como Serra, Botelho também reconhece a LGBTfobia presente em parte do discurso cristão, e entende o impacto disso sobre a vida das pessoas, mas acha importante marcar espaço e declarar sua existência. “É importante gerar essa tensão, gerar o debate, o desconforto. Muita gente fala para não perdermos tempo com uma fé que não nos aceita, mas durante muito tempo o Estado também não nos aceitava. E não dá para desistir do Estado, eu disputo o Estado. Nesse sentido, não vamos desistir do mundo religioso. Desistir é entregar o poder a quem nos agride.”

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