Vinte e uma organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, assinam nota de apoio à comunidade venezuelana e de repúdio a falas do presidente Jair Bolsonaro sobre meninas venezuelanas. As entidades afirmam que o presidente “promove desinformação sobre a comunidade venezuelana do Distrito Federal”.
As organizações abaixo subscritas, atuantes no âmbito do Direito Migratório e do Direito Internacional dos Refugiados, vêm expressar seu repúdio e preocupação com as falas do presidente da República, no dia 14 de outubro de 2022, sobre meninas venezuelanas, de 14 e 15 anos, em São Sebastião, região administrativa do Distrito Federal.
Tal manifestação afronta diretamente garantias asseguradas nas Políticas do Estado brasileiro de proteção a adolescentes, mulheres e migrantes, banaliza a prática de conduta criminosa e as coloca em ainda maior risco de violência pela estigmatização, desinformação e xenofobia. Ainda mais grave por se tratar de fala do Presidente da República, sobre quem recai o dever de fazer cumprir princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal Brasileira.
A fala do presidente promove desinformação sobre a comunidade venezuelana do Distrito Federal, uma vez que organizações da sociedade civil locais confirmaram que não há indícios da existência de redes de exploração sexual na região e não foram apresentadas provas sobre as graves insinuações efetuadas. Jornalistas também apuraram que, no dia da visita, um projeto social envolvendo atividades de estética estava acontecendo no local. Ressaltamos que, à época do fato relatado, em abril de 2021, não foram levantadas quaisquer das alegações feitas agora, inclusive em nenhum dos registros publicados nas redes sociais do presidente.
A exposição da comunidade venezuelana, promovida através de acusações infundadas do presidente da República, coloca em risco a integridade física e segurança de venezuelanos e venezuelanas, e, de forma ainda mais preocupante, de meninas e adolescentes dessa comunidade. Conforme demonstra uma coluna do Globo, desde que a fala começou a repercutir no último fim de semana, a casa tem sido cercada por repórteres, além de a primeira-dama e a senadora eleita Damares Alves terem forçado um encontro, em caráter sigiloso, sem a presença de organizações e instituições que atuam na defesa de crianças e adolescentes e pessoas migrantes, mesmo após a inicial recusa das líderes venezuelanas da comunidade.
Todos esses acontecimentos desrespeitam o paradigma da proteção integral das crianças e adolescentes expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, inclusive, estabelece como dever de todos garantir o direito à privacidade, preservando a imagem e identidade dessas pessoas na condição peculiar de desenvolvimento (Art. 17), “pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (Art. 18).
A afirmação do presidente também estimula a estigmatização de pessoas migrantes e refugiadas e, por consequência, busca deslegitimar o direito de migrar. Atualmente, existem mais de 365 mil pessoas migrantes e refugiadas venezuelanas no Brasil, que contribuem para o desenvolvimento econômico e cultural do país. Apesar de o país ter avançado no atendimento emergencial humanitário com a Operação Acolhida, ainda faltam políticas de longo prazo para a efetiva integração socioeconômica dessas pessoas. Neste contexto, associações e coletivos de migrantes, organizações da sociedade civil, instituições e organizações internacionais têm somado esforços para acolher, integrar e proteger pessoas migrantes no país. A fala proferida pelo Chefe de Estado está na contramão desses esforços e contribui para a propagação da xenofobia, podendo afetar negativamente a percepção social sobre a migração. O combate e prevenção à discriminação e à xenofobia devem ser considerados prioridade em um Estado democrático de direito e são princípios da Lei de Migração brasileira (Art. 3, II).
Ainda que fosse identificado qualquer crime de exploração sexual no local, o presidente da República, na condição de agente público, teria o dever de seguir o correto protocolo a ser adotado nesses casos, incluindo o acionamento das redes de proteção às possíveis vítimas, conforme o ECA e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil. Além disso, o procedimento aplicado a pessoas migrantes e refugiadas deve ser o mesmo aplicado para pessoas brasileiras.
De acordo com o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, as obrigações estatais definidas na Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança se aplicam a todas as crianças que se encontram no país, independentemente de nacionalidade, status migratório ou apatridia. Além disso, o Unicef também afirma que os Estados devem tomar medidas positivas para garantir que crianças vítimas de tráfico desfrutem de todos os direitos previstos na Convenção, levando em consideração o princípio do melhor interesse da criança e o direito à proteção sem discriminação de raça, gênero, religião, origem, nacionalidade ou status migratório.
Os canais de denúncias oficiais são fundamentais à proteção de crianças em situação de exploração ou abuso sexual. Para denunciar estes crimes, deve-se buscar o Conselho Tutelar, delegacias especializadas no atendimento de crianças ou de mulheres, o Ministério Público ou ligar para o Disque Direitos Humanos (Disque 100), que recebe denúncias de violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes, e para a Central de Atendimento à Mulher (Disque 180), que recebe denúncias de violações contra mulheres, inclusive as migrantes e refugiadas, e as encaminha aos órgãos competentes. Ambos os canais recebem denúncias gratuita e anonimamente. Toda possível situação de violência deve ser reportada para a ciência do poder público e seus respectivos procedimentos investigatórios, sob pena de a omissão também acarretar em uma conduta criminosa.
Por fim, saudamos iniciativas como a da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que entrou com representação junto à Defensoria da Infância e da Adolescência para garantir medida protetiva às adolescentes venezuelanas citadas pelo presidente Bolsonaro. O momento requer que seja dada prioridade absoluta à proteção a essas adolescentes migrantes e às lideranças venezuelanas expostas neste episódio.
Assinam:
Artigo 19
Associação Nacional de Centros de defesa da Criança e do Adolescente – ANCED
Associação Palotina e Congregação das Irmãs do Apostolado Católico
Cáritas Arquidiocesana de São Paulo
Cáritas Brasileira
Cáritas Brasileira Regional Nordeste 2
Cáritas Brasileira Regional Paraná
Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante – CDHIC
Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – CESEEP
Centro de Integração do Migrante
Conectas Direitos Humanos
Equipe de Base Warmis-Convergência das Culturas
Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP
FICAS
Fundação Avina
Grupo de Apoio ao Imigrante e Refugiado do Oeste de Santa Catarina – GAIROSC
Instituto Migrações e Direitos Humanos – IMDH
Missão Paz
Migraidh Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional UFSM
Observatório das Metrópoles – São Paulo
Observatório Eclesial Brasil
Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes – ProMigra
Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados – SJMR
Signis Brasil