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02/09/2024

Organizações “amigas da Corte” apontam risco de retrocesso para direitos indígenas em conciliação sobre Lei 14.701 no STF

Após saída da Apib da mesa de conciliação, doze organizações reforçam críticas à condução e à falta de clareza acerca do objeto em debate na mesa de conciliação

Indígena durante manifestação contra o chamado Marco temporal em frente ao Congresso Nacional em maio de 2023. (Foto de Sergio Lima / AFP) Indígena durante manifestação contra o chamado Marco temporal em frente ao Congresso Nacional em maio de 2023. (Foto de Sergio Lima / AFP)

Doze organizações e representações que atuam como amici curiae – “amigas da Corte” – no processo que discute a constitucionalidade da Lei 14.701/2023 divulgaram uma nota pública em que criticam a condução da mesa de conciliação sobre o tema que ocorre no Supremo Tribunal Federal (STF), determinada pelo ministro Gilmar Mendes. As organizações também prestam apoio à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que se retirou da mesa de conciliação nesta quarta-feira (28) por entender que “qualquer negociação sobre direitos fundamentais é inadmissível”.

A mesa de conciliação foi estabelecida no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7.582, 7.583 e 7.586, assim como da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86, todas elas sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes.

Na nota, as organizações pontuam críticas em relação ao formato e à condução da mesa de conciliação, a começar pelo fato de que as tratativas começaram a funcionar sem que pedidos da Apib fossem sequer apreciados. “Em especial”, destaca a nota, “a necessidade de afirmar a inconstitucionalidade da Lei 14.701, ao menos de seus dispositivos em completo desacordo com o julgamento do STF no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365”.

O julgamento em questão, de repercussão geral, foi concluído em setembro de 2023 e fixou o entendimento da Suprema Corte sobre os direitos constitucionais indígenas. A posição do STF foi diametralmente oposta a diversos pontos que, depois, foram incluídos pelo Congresso Nacional na Lei 14.701. A norma está em vigor desde sua promulgação, em dezembro de 2023.

As organizações apontam que a falta de clareza sobre o objeto da discussão nas audiências de conciliação levam a crer que os direitos territoriais indígenas, reconhecidos como direitos fundamentais pelo próprio STF no julgamento de repercussão geral, podem acabar sendo “negociados e mesmo sofrer retrocesso”.

A nota aponta ainda uma postura intransigente do coordenador das audiências em relação aos representantes indígenas e cita as ameaças de que, sem conciliação, “uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para instituir o marco temporal de 5 de outubro de 1988 seria posta em votação” pelo Congresso.

“O sentimento coletivo, tanto das representações indígenas como das entidades que há décadas trabalham com a matéria, foi de indignação e humilhação, dado o aviltamento a que foi submetida questão constitucional”, afirma o documento.

Apesar das críticas à mesa, as entidades reafirmam a confiança na capacidade do STF em “compreender o sentido do artigo 231 da Constituição Federal”, citando o julgamento do  RE 1.017.365 como um exemplo de entendimento a ser mantido.

Leia a nota na íntegra:

Nota dos amici curiae sobre a condução da mesa de conciliação que discute a constitucionalidade da Lei 14.701/2023

As entidades abaixo relacionadas, todas admitidas como amici curiae nos autos da ADC 87, onde se encontram reunidas as ADI 7.582, 7.583 e 7.586, bem como a ADO 86, vêm externar a sua posição a respeito da condução dos trabalhos, pelo juiz auxiliar Diego Viegas Veras, no âmbito da Comissão Especial instituída pelo Ministro Gilmar Mendes com o propósito de buscar a resolução de problemas “no que se refere ao tema dos direitos da população indígena e não indígena que envolvem o art. 231 da CF e a Lei 14.701/2023”.

  1. A Comissão Especial começou a funcionar sem que questões prejudiciais, suscitadas reiteradamente pela Apib, fossem respondidas, em especial a necessidade de afirmar a inconstitucionalidade da Lei 14.701, ao menos de seus dispositivos em completo desacordo com o julgamento do STF no RE 1.017.365. Há jurisprudência tranquila no sentido de que uma lei que surge em oposição direta ao entendimento do STF nasce com a presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, recaindo sobre o legislador ônus argumentativo que justifique a razão de superação de julgado da Corte, o que não ocorreu.
  2. A audiência inaugural da Comissão Especial, sob o comando do juiz Diego Viegas Veras, começou com a ameaça de que, caso não houvesse a conciliação, uma PEC para instituir o marco temporal de 5 de outubro de 1988 seria posta em votação. Um áudio protagonizado pelo presidente do Senado Federal foi colocado em alto volume, para que não houvesse dúvidas a respeito. O mesmo ocorreu na segunda audiência, onde a postura da condução da mesa foi demasiado intransigente com os apontamentos feitos pelos povos indígenas, reduzindo os questionamentos constitucionais a “questões laterais”.
  3. Na sequência, vários incidentes demonstraram o absoluto desconhecimento do juiz instrutor com a temática posta sob conciliação, ora sugerindo que a Funai teria algum papel de representação dos povos indígenas, ora afirmando que a conciliação seguiria mesmo sem a presença da representação indígena.
  4. Tampouco houve clareza sobre os limites do que seria passível de conciliação, tudo levando a crer que direitos cuja fundamentalidade foi afirmada pelo próprio STF no julgamento do RE 1.017.365 poderiam ser negociados e mesmo sofrer retrocesso.
  5. O sentimento coletivo, tanto das representações indígenas como das entidades que há décadas trabalham com a matéria, foi de indignação e humilhação, dado o aviltamento a que foi submetida questão constitucional.
  6. A decisão tomada no dia de hoje, de saída da Apib enquanto movimento de representação nacional e que agrega organizações de todas as regiões do Brasil, é referendada pelas entidades signatárias por duas razões muito básicas. A primeira é que a própria ideia de conciliação como autocomposição de conflitos parece supor que todas as partes concordaram com essa forma de solução da controvérsia. Quando uma das partes a recusa, o tema necessariamente volta ao julgador para a decisão. Do contrário, a parte recusante terá negado o seu acesso à justiça. A APIB, e não outra entidade indígena, convém lembrar, é uma das autoras da ADI 7.582. E a segunda é a própria centralidade que os povos indígenas têm nas questões que lhes concernem diretamente, nos termos da Convenção 169 da OIT. É inconcebível que se discutam seus direitos territoriais sem a presença de povos indígenas.
  7. As entidades signatárias reafirmam a sua confiança no Supremo Tribunal Federal, que soube bem compreender o sentido do artigo 231 da Constituição Federal por ocasião do julgamento do RE 1.017.365.

 Brasília, 28 de agosto de 2024

 Associação Juízes para a Democracia – AJD

Associação Brasileira de Antropologia – ABA

Alternativa Terrazul

Comissão Guarani Yvyrupa – CGY

Centro de Trabalho Indigenista – CTI

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Conectas Direitos Humanos

Comissão Arns 

Instituto Alana

Instituto Socioambiental – ISA

Povo Xokleng da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ

WWF-Brasil

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